CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Sexualidade e o poder médico

Realizado no dia 24 de agosto e tendo como coordenadora a antropóloga Fabíola Rohden (CLAM/IMS/UERJ), o painel Desestabilizações da categoria Gênero e suas repercussões na saúde discutiu como o saber e a prática médica se colocam frente à fragmentação da categoria gênero e às identidades sexuais.

Regina Facchini

A antropóloga Regina Facchini (Unicamp) expôs o tema Cuidados à saúde sexual e reprodutiva entre mulheres que fazem sexo com mulheres (MSM) da Grande São Paulo, baseando-se em pesquisa qualitativa iniciada em 2003 escrita em co-autoria com a coordenadora do trabalho, Regina Barbosa, sobre a saúde de mulheres que fazem sexo com mulheres da Grande São Paulo. “Procuro, a partir da exposição de resultados dessa pesquisa, explorar a rentabilidade de um referencial teórico construído no campo dos estudos de gênero e sexualidade na abordagem de temas relacionados à saúde”, afirmou Regina.

Segundo ela, a literatura internacional indica uma menor freqüência de realização de exames ginecológicos, de exames de Papanicolau e de prevenção de câncer de mama entre as mulheres que fazem sexo com mulheres. As razões apontadas sugerem dificuldades tanto da parte das mulheres quanto dos profissionais, associadas à existência de discriminação nos serviços de saúde, ao despreparo dos profissionais para lidar com as especificidades desse grupo populacional, e às dificuldades das mulheres em assumir a homo ou a bissexualidade.

Foram entrevistadas 30 mulheres que fazem sexo com mulheres residentes na grande São Paulo, com idade entre 18 e 45 anos, de diferentes etnias, níveis educacionais, profissões, idades, atributos corporais de gênero, trajetórias afetivo-sexuais (experiência homo ou bissexual), situações conjugais e identidades sexuais. O foco da análise situou-se no acesso a consultas ginecológicas e a exames de Papanicolau, a percepção de riscos e de necessidades, as representações sobre o próprio corpo e sobre ginecologistas e consultas ginecológicas.

“Neste trabalho, assumimos como hipótese que tanto as representações e as experiências negativas em relação aos serviços de saúde, quanto as representações relativas a gênero, sexualidade e ao próprio corpo, mantêm relação com a dificuldade em acessar cuidados efetivos e integrais à saúde”, disse a pesquisadora.

“A análise do material sugere que a presença de uma conformação corporal auto-referida como ‘mais masculinizada’ se relaciona também à menor freqüência a serviços de saúde ginecológica neste conjunto de entrevistadas. Entre aquelas que tiveram nenhuma ou poucas consultas sem regularidade foi muito comum encontrar falas que remetiam à ausência de “necessidade”, muitas vezes relacionadas à percepção de risco reduzida e a representações específicas sobre ginecologistas como médico que trata de gravidez e de DST”, observou Regina.

Para ela, embora boa parte da bibliografia internacional sobre acesso a cuidados ginecológicos entre MSM faça referência à relação entre preconceito homofóbico e menor acesso a serviços, os dados da pesquisa sugerem que, apesar da discriminação e do preconceito por parte do profissional constituírem uma realidade, a situação não configura um impeditivo para a ida dessas mulheres ao ginecologista. “O receio e a idéia de preconceito estiveram muito mais associados à decisão de relatar ou não ao profissional as práticas e preferências eróticas”, relatou a antropóloga.


Clique aqui e veja a íntegra da exposição de Regina Facchini.


Elizabeth Zambrano

Tendo como foco sua dissertação de mestrado em Antropologia Social pelo PPGAS/UFRGS, intitulada Trocando os documentos: um estudo antropológico sobre a cirurgia de troca de sexo, a médica psicanalista Elizabeth Zambrano (Nupacs/UFRGS) analisou, em sua exposição, a relação entre transexualidade e o saber médico.

“Um dos pressupostos médicos para a realização da cirurgia de trangenitalização é o de que existe uma patologia. A visão médica principal é a de corrigir e normatizar. Para o poder médico, existem dois sexos e duas orientações sexuais. Deve haver então a necessidade de harmonia entre esses elementos”, disse ela. “Então, as transexuais que desejam se submeter à cirurgia fazem, a princípio, uma adequação com o discurso médico. Num primeiro momento, elas se auto-identificam como homossexuais. Elas constroem um discurso que se adeque ao discurso médico a fim de garantir a operação. O desejo pela cirurgia promove esta adequação”, analisou.

A médica relatou algumas das conseqüências dessa visão normatizadora da medicina em relação à categoria trans. “Ao transformar em patologia a transexualidade, eles não abarcam a totalidade dessa experiência. Ou seja, o discurso médico fica aquém da experiência transexual”.

Elizabeth discorreu também acerca das possibilidades de acesso à parentalidade por essa população. “Essas possibilidades se dão ou através das novas tecnologias reprodutivas – coleta de sêmen antes da cirurgia –, da adoção legal – na qual o Judiciário usa o discurso médico para legitimar a adoção – ou da adoção informal”, explicou.

Ao longo de sua pesquisa, contou ela, uma de suas percepções foi a de haver um aumento na preocupação dos operadores de direito quanto à adoção de crianças por pessoas que fogem às normas da heterossexualidade. “Apesar de elas, através da cirurgia, derrubarem o argumento da diferença dos sexos. Elas já fizeram a cirurgia, portanto podem ser consideradas “curadas”. Fica mantida a diferença de sexos. Então, como se explica a dificuldade de adoção?”, questionou.

Sérgio Carrara

A exposição do antropólogo Sérgio Carrara (CLAM/IMS/UERJ) enfocou a relação entre homossexualidade e política. O tema da apresentação foi o atual processo de constituição dos sujeitos políticos e dos sujeitos de direito no campo da sexualidade e do gênero, assunto sobre o qual Carrara tem se dedicado nos últimos anos.

O pesquisador abordou a temática da fragmentação no plano dos movimento GLBT. “Essa configuração de um movimento social que opera a partir de seu desdobramento é bastante singular”, iniciou Carrara. “Trata-se de um movimento reconhecido através de uma sigla e que vai agregando cada vez mais uma letrinha. No caso do movimento homossexual argentino, por exemplo, GLBTT, com esse T a mais para referir-se aos ‘inter-sexuais’”

. Segundo ele, essa fragmentação se dá de forma interessante no plano da saúde. “Na sua resposta à demanda da população homossexual, a saúde vai especificando seus sujeitos”, observou Carrara.

“Assistimos hoje a uma espécie de explosão ou estilhaçamento da antiga categoria de homossexualidade sob a pressão de dois processos políticos mais gerais. Ambos estão relacionados ao modo como o dispositivo da sexualidade, conforme o descreveu Foucault, vem se rearticulando desde o pós-guerra. O primeiro deles diz respeito à posição da reprodução biológica no interior desse dispositivo; o segundo à crescente especificação, tanto no nível dos movimentos sociais quanto das políticas públicas, de sujeitos particulares, em grande medida forjados a partir da desarticulação entre sexo anatômico, gênero e sexualidade ou orientação sexual. Quanto ao primeiro processo, poderíamos dizer que a preocupação com a reprodução biológica vem passando lentamente a um segundo plano no âmbito do dispositivo da sexualidade, que até muito recentemente condenava em bloco todo tipo de sexualidade ou de práticas sexuais não-reprodutivas. Assim, o caráter “santuário” do desejo e das práticas homossexuais tem deixado lentamente de ser um problema do ponto de vista das políticas sexuais”.

O antropólogo afirmou que, “dentro do paradigma onde os órgãos anatômicos estão ‘colados’ na orientação sexual, a qual está ‘colada’ no gênero, a homossexualidade se apresenta com uma inversão sexual”.

Para ele, o que se vê na atualidade é a fragmentação desse paradigma. “Esse ‘colamento’ era fundante para o dispositivo da sexualidade. Cada vez mais percebemos que os planos do sexo anatômico, da orientação sexual e do gênero estão se fragmentando”, disse.