O Ministério da Saúde brasileiro suspendeu esta semana uma campanha de prevenção destinada às prostitutas e demitiu o diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatite Virais, Dirceu Greco. O recuo faz parte de um conjunto de ações preocupantes relativas ao campo da saúde – como a suspensão de campanha de prevenção à Aids voltada a jovens gays no Carnaval de 2012, a malfadada Medida Provisória 557, o Estatuto do Nascituro e a proposta de internação compulsória de dependentes de drogas –, medidas resultantes do comprometimento do governo com a "aliada" bancada evangélica em troca de apoio e votos para garantir futuras eleições. Em nome desta “aliança”, o governo vem ignorando a participação popular, colocando em risco avanços conquistados e, sobretudo, a laicidade do estado.
Composta por banners e vídeos, a iniciativa era desdobramento de oficina realizada em março por profissionais do sexo, e foi pensada como forma de combater o preconceito contra as prostitutas e estimular a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, aproveitando o mote do Dia Internacional das Prostitutas (2 de junho). O material trazia mensagens do tipo “Eu sou feliz sendo prostituta” e “Sem vergonha de usar camisinha”.
Como tem sido costume quando temas envolvendo direitos sexuais e reprodutivos são agendados pelo governo, parlamentares da bancada evangélica rapidamente se manifestaram contra a campanha, através de declarações do tipo ”Esse governo tem uma capacidade de buscar uns temas que me assusta. Não tem outra política pública decente para fazer? Já vejo os títulos das próximas campanhas. Sou adúltero, sou feliz. Sou incestuoso, siga-me. Sou pedófilo, sou feliz, sou realizado" e “a mulher não nasceu para ser prostituta, nasceu para ser mãe de família”.
Para o médico e assessor da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) Juan Carlos Raxach, o recuo do Ministério da Saúde é, acima de tudo, um risco à saúde pública. “O governo tem funcionado em prol da moralidade. As prostitutas são um segmento em situação de vulnerabilidade social. O estigma afeta diretamente a saúde delas. A ação do Ministério lembra o período inicial da epidemia do HIV, quando a doença esteve, por uma lógica moralista, fortemente vinculada à homossexualidade, obrigando movimentos sociais a cobrar respostas”, afirma Juan Carlos.
Nos últimos tempos, a Saúde tem estado estrategicamente na mira dos setores conservadores, já que neste campo o Brasil tem sido detentor de reputação internacional, em função de avanços promovidos no campo da saúde sexual e reprodutiva, especialmente nas políticas de enfrentamento à Aids – onde o país tornou-se modelo no mundo – e as relativas ao planejamento familiar. A pressão de setores conservadores, no entanto, tem surtido efeito nas políticas encaminhadas pelo governo. Ano passado, o governo retirou de circulação campanha voltada para a prevenção do HIV/Aids entre jovens gays. E, mais recentemente, em março deste ano, o governo também suspendeu a distribuição de kit educativo sobre Aids nas escolas. Esta semana, a Comissão de Finanças da Câmara do Deputados aprovou o Estatuto do Nascituro que concede proteção jurídica ao embrião e atinge especialmente o direitos ao aborto.
Em nome da aliança parlamentar e dos arranjos eleitorais para o próximo pleito nacional (2014), o governo tem privilegiado o compromisso com segmentos conservadores e fundamentalistas, o que tem colocado em xeque, além da laicidade do Estado, avanços importantes no campo da saúde, como a prevenção ao HIV/Aids, o combate à homofobia, a saúde reprodutiva feminina e os modelos médicos e assistenciais relativos à saúde mental.
“É triste e preocupante o contexto atual. E uma incoerência muito grande, pois a área da saúde muito ajudou na construção de respostas sociais para a questão do HIV”, afirma Juan Carlos Raxach.
De acordo com doutor em medicina social Veriano Terto, as questões de saúde tornaram-se uma via fácil de manipulação pela ótica da moral. “Isso tem um preço alto, que é afetar a saúde das pessoas, levando muitas vezes a se aniquilar até mesmo o direito à autonomia e à liberdade, exigindo a exclusão das prostitutas do rol de ação do Estado”, observa o e ex-coordenador da Abia. Outro problema grave, segundo Veriano, é o fato de o governo federal – paradoxalmente um governo dito de esquerda – estar ignorando a participação popular. “o governo não tem ouvido a sociedade civil, nem dado atenção às demandas de minorias marginalizadas. Por causa de conveniências políticas e eleitorais, coloca-se de lado direitos já conquistados, e a sociedade civil fica cada vez mais alijada das discussões e decisões”.
Nos últimos tempos, a questão da saúde mental também tem sido articulada no marco dessas negociações entre governo e as comunidades religiosas. Tramita na Câmara o PL 7663/2010, do deputado Osmar Terra (PMDB-RS), que prevê o endurecimento penal na questão das drogas e diverge de diretrizes de saúde mental estabelecidas no âmbito da Lei 10.216/2001 (Reforma Psiquiátrica), que modificou o modelo de tratamento clínico ao privilegiar o acolhimento psicossocial ao invés da internação. De acordo com o PL 7663, a internação dos pacientes e a abstinência passam a ser prioridades. O texto dá ênfase aos convênios com instituições privadas, como comunidades terapêuticas geralmente associadas a grupos religiosos que apostam na “cura” por meio da conversão.
Para o psicólogo e professor do Instituto de Medicina Social (IMS/Uerj) Martinho Silva, tal projeto representa um risco de retrocesso para a Reforma Psiquiátrica. “A internação é naturalizada como procedimento terapêutico no PL 7663, enquanto na Lei 10.216 ela é apenas um dos recursos, utilizado em casos específicos como os de crise, mas não é o principal. A Reforma de 2001 estabeleceu os Centros de Atendimento Psicossocial como forma de tratamento prioritário. Infelizmente, a rede de atendimento é insuficiente, o que abre espaço para que projetos como o PL 7663 surjam como forma de preencher essa lacuna”, observa Martinho Silva.
Para o professor do IMS, a articulação com grupos religiosos é problemática. O decreto 131/2012 do governo federal prevê o repasse de verbas para que as comunidades terapêuticas possam funcionar. “Tais comunidades são definidas e financiadas como sendo de assistência social, porém acabam funcionando como serviços de saúde. Não há controle e fiscalização eficiente para saber como as coisas realmente acontecem dentro desses espaços, embora a lógica de assistência, mesmo a divulgada, costume ser a da abstinência e não a da redução de danos", critica Martinho Silva.
O governo Dilma Rousseff tem evitado posturas liberais em matéria de drogas. Logo no primeiro mês da gestão Dilma Rousseff, o ex-secretário nacional de justiça Pedro Abramovay declarou em entrevista ser a favor de penas alternativas ao invés do encarceramento de pequenos traficantes. Dias depois, demitiu-se do cargo. A postura do governo tem ido na contramão de tendência mundial de regulamentação das drogas. Alguns Estados nos Estados Unidos já prevêem o uso de determinadas drogas. A Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), que inicia esta semana, discutirá caminhos alternativos à repressão policial e militar que caracteriza a chamada “guerra às drogas”.
A suspensão da campanha repercutiu negativamente entre movimentos sociais. O ex-diretor do Depto de DST, Dirceu Greco, afirmou que enxerga uma “situação nacional e internacional conservadora”. Para Greco, “em qualquer situação, o papel que o gestor de saúde tem é separar o que é saúde, do ponto de vista lato, do que é decisão individual em relação à religião. São situações completamente separadas. Se você é um fundamentalista e quer andar de burca, é um direito seu. Mas não pode ir contra mim por eu não ser desse jeito”, afirmou em entrevista ao jornal O Globo.