A aprovação por parte de dois parlamentos europeus – o britânico e o francês – do casamento entre pessoas pessoas do mesmo sexo, gerou – especialmente no segundo caso – um forte movimento de resistência de setores católicos. Vale especular se estes triunfos do Estado laico não estariam relacionados à renúncia do papa Bento XVI, articulador chave nesta oposição. O pontífice anunciou sua demissão no dia 11 de fevereiro, depois de quase oito anos de papado e de 15 anos à frente da Congregação para a Doutrina da Fé, a antiga Santa Inquisição.
São inúmeras as tentativas de explicar os motivos que levaram Joseph Ratzinger a renunciar. Uma das teorías relaciona seu pedido de demissão ao seu fracasso de impor limites a uma administração corrupta, e a um generalizado abuso de poder e acobertamento de condutas criminosas, como os casos de pedofilia dentro da Igreja.
Desde que assumiu o cargo de Papa em 19 de abril de 2005, Joseph Ratzinger apresentou o que seria sua linha de ação na defesa de uma definição da sexualidade que privilegia os varões e naturaliza a familia heterossexual como único espaço legítimo para a sexualidade. Na encíclica Deus Caritas Est (Deus é amor), publicada naquele ano, o papa qualifica as relações entre pessoas do mesmo sexo como “amor fraco”, uma vez que este não frutifica em termos de trazer novas vidas ao mundo. Somente o amor heterossexual é considerado “forte”, enquanto o amor homossexual seria hedonista e egoísta. (Veja o texto Posição Inabalável)
O papado de Bento XVI foi muito conservador em todos os aspectos, principalmente no que diz respeito aos temas da sexualidade, gênero e aborto. Um exemplo é a encíclica em questão, a qual pode ser qualificada como um ataque aberto á pluralidade sexual e à autonomía reprodutiva.
Assim como seu antecessor João Paulo II, Ratzinger aproveitou todas as ocasiões possíveis para condenar o aborto e a autonomía das mulheres. Em 2004, seu último ano como cardeal, dirigiu a Carta aos bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo, onde diz:
“Nestes últimos anos têm-se delineado novas tendências na abordagem do tema da mulher. Uma primeira tendência sublinha fortemente a condição de subordinação da mulher, procurando criar uma atitude de contestação. A mulher, para ser ela mesma, apresenta-se como antagónica do homem. Aos abusos de poder, responde com uma estratégia de busca do poder. Um tal processo leva a uma rivalidade entre os sexos, onde a identidade e o papel de um são assumidos em prejuízo do outro, com a consequência de introduzir na antropologia uma perniciosa confusão, que tem o seu revés mais imediato e nefasto na estrutura da família.
Uma segunda tendência emerge no sulco da primeira. Para evitar qualquer supremacia de um ou de outro sexo, tende-se a eliminar as suas diferenças, considerando-as simples efeitos de um condicionamento histórico-cultural. Neste nivelamento, a diferença corpórea, chamada sexo, é minimizada, ao passo que a dimensão estritamente cultural, chamada gênero, é sublinhada ao máximo e considerada primária. O obscurecimento da diferença ou dualidade dos sexos é grávido de enormes consequências a diversos níveis. Uma tal antropologia, que entendia favorecer perspectivas igualitárias para a mulher, libertando-a de todo o determinismo biológico, acabou de fato por inspirar ideologias que promovem, por exemplo, o questionamento da família, por sua índole natural bi-parental, ou seja, composta de pai e de mãe, a equiparação da homossexualidade à heterossexualidade, um novo modelo de sexualidade polimórfica.”
Neste discurso essencialista, o então cardeal já criticava uma certa valorização da “dimensão estritamente cultural chamada gênero” pela antropología, em detrimento da “diferença corpórea natural chamada sexo”.
A culpa é da teoria de gênero
Para a Igreja, o casamento é a última fronteira, e a hierarquia católica vai resistir como pode, em especial quando recebe golpes não somente de países como França, Espanha, Portugal e Reino Unido – cujos parlamentos passaram a discutir leis de matrimônio homossexual –, mas também de países americanos, que têm cada vez mais avançado na mesma direção.
Na América Latina, a Argentina aprovou o matrimônio igualitário em 2010. No México, a Suprema Corte de Justiça da Nação abriu a porta ao reconhecimento legal das “bodas gay” em todo o país no ano passado. O Chile discutirá este ano o projeto de Acordo de Vida em Casal (“Acuerdo de Vida en Pareja”). No Uruguai, a Frente Ampla, partido governante, incluiu o tema em seu programa e conseguiu reformar a legislação. Na Colômbia, o Congresso tem prazo até junho deste ano para regulamentar estas uniões segundo estabeleceu a Corte Constitucional.
Nos Estados Unidos, em novembro passado, os eleitores aprovaram o matrimônio homossexual nos estados do Maine, Maryland e em Washington, e a Suprema Corte escutará os argumentos sobre proibições federais e estaduais contra essa reforma legal. Estes avançoes legais estão em sintonia com as declarações do presidente Obama, que reiterou seu apoio ao casamento homossexual durante seu segundo governo.
A Igreja Católica parece estar perdendo a batalha do matrimônio homossexual e por isso “está esperneando”. Em compensação, está vencendo a batalha do aborto, muito embora os Estados encontrem-se envolvidos em um jogo entre direitos LGBT, por um lado, e aborto por outro.
Nesta perspectiva, o matrimônio representa um ponto nodal, e se recorre à doutrina cada vez que as condições políticas o exigem. Talvez por isso mesmo, em seu discurso de dezembro de 2012 à Curia Romana, o papa Bento XVI tenha conclamado os cristãos a dizerem "não" à teoria de gênero e ""sim" à aliança entre homens e mulheres no casamento. Neste novo discurso firme contra o que ele chamou de "uma antropologia de fundo ateu", Joseph Ratzinger denunciou à imprensa a “falsidade” dos estudos de gênero e pediu aos católicos que se manifestassem contra o “casamento gay”. Defendeu com força o modelo de família composto por pai, mãe e filho e também citou a célebre frase da escritora francesa Simone de Beauvoir, “Não se nasce mulher. Torna-se mulher”, para ilustrar o que chamou “a nova filosofía da sexualidade”.
A bandeira de luta ‘antigênero’ foi levantada pelo Papa menos de um mês antes de sua renuncia, e não causou grandes surpresas. Para Sonia Correa, co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW, na sigla em inglês) e pesquisadora da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), tais pontos de vista “são os pilares do catolicismo doutrinal e filosófico sobre o lugar da sexualidade na reprodução da vida humana em relação à criação e ao divino”. Principalmente, observa a pesquisadora, o naturalismo e o essencialismo da doutrina católica converge com o essencialismo da ciência mais convencional.
“Os que escapam desta doutrina estão inscritos no ‘mundi cloaca’ (Santo Agostinho), onde se desenvolve o desejo desordenado. Tal desejo existe e é reconhecido, mas não se pode ceder à tentação. O que a doutrina proíbe é traduzir em ato o desejo por um corpo igual, dissociando-se da procriação, seja dentro ou fora do casamento. E se a pessoa cede à tentação, sempre existe o recurso à confissão e à penitência”, salienta.
No artigo Negociando los Derechos Sexuales sobre Sexualidad: Una historia de y la orientación sexual en la ONU, parte do livro de coletâneas Las Políticas sobre sexualidad de las Naciones Unidas, Françoise Girard descreve com precisão a luta dos teóricos do Vaticano, durante a preparação da Plataforma de Ação de Beijing de 1995, por impor sua visão a respeito da sexualidade, da família, do casamento e da igualdade entre sexos.
Em uma oportunidade, destaca Girard, grupos de direita dos Estados Unidos acusaram os grupos feministas de promoverem cinco gêneros. Um panfleto da Coalizão para as Mulheres e a Família estabelecia: “infelizmente existe um ‘feminismo de gênero’, frequentemente homossexual, que promove fortemente a ideia de que o gênero é algo fluido, mutante, não relacionado de maneira natural com ser um homem ou ser uma mulher. De acordo com tais ideologias feministas/homossexuais, existem ao menos cinco gêneros”.
Girard explica que esta acusação se baseava aparentemente em um artigo de Anne Fausto-Sterling publicado em 1993, no qual a bióloga feminista especialista em estudos de gênero argumentava a favor de substituir o sistema de dois sexos por um de cinco: mulher, homem, “verdadeiros” hermafroditas, homens “pseudo-hermafroditas” e mulheres “pseudo-hermafroditas”.
”Questionar a palavra ‘gênero’ foi uma manobra preventiva da Santa Sé contra futuras reivindicações, baseadas na identidade de gênero e na expressão de gênero?”, pergunta-se Girard em seu artigo.
Dogma versus pluralismo
Sem negar que Igreja Católica seja um obstáculo à aceitação dos direitos sexuais como direitos humanos, o pesquisador argentino Juan Marco Vaggione assinala – em seu texto Sexualidad, Religión y Política en América Latina, preparado para o Diálogo Regional sobre Sexualidade e Política, do SPW – que há um potencial de mudança em sua comunidade religiosa e teólogos/as progresistas que, ao entrar em choque com alguns dogmas da Igreja, se mobilizam por inscrever uma postura religiosa, neste caso católica, favorável à diversidade e à liberdade sexual.
Vaggione explica que frente a uma doutrina católica que insiste em conectar a sexualidade à reprodução (dentro do casamento), proibindo os contraceptivos artificiais; a população, por sua vez, tende a aceitar as práticas contraceptivas. “Inclusive uma porcentagem alta aceita a anticoncepção de emergência a vítimas de estupro e aos que fizeram sexo sem proteção”, aponta o pesquisador
A pesquisa Pensamento da juventude católica sobre sexualidade, reprodução e Estado laico, encomendada pela organização Católicas pelo Direito de Decidir (CDD) ao Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) em 2007, na ocasião da visita de Bento XVI ao Brasil, informa que 95% dos 1.268 jovens católicos entrevistados em 315 municípios do país, concordavam com o uso da camisinha para evitar gravidez e doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), 88% declararam não ver qualquer discrepância entre usar métodos contraceptivos e ser um bom católico e 79% discordaram da afirmação “as pessoas só devem ter relações sexuais após o casamento”. Ainda de acordo com o estudo, 72% desses jovens consideram atrasada a posição da Igreja Católica de condenar o uso do preservativo.
Estudioso de religião há mais de cinco décadas, o leigo Luiz Alberto Gomes esteve presente em todas as edições do CELAM (Conferência do Episcopado LatinoAmericano e Caribe), para a qual Bento XVI veio ao Brasil em 2007. Também já presenciou as passagens dos dois últimos papas pelo Brasil. Para ele, o que deve ser focalizado e valorizado é a consciência de cada um. “A consciência moral existe não só para católicos, mas para qualquer ser humano. A modernidade é nesse sentido crucial. Pois no mundo antigo a consciência era ditada pelo rei, pelo imperador ou pelo sacerdote. Hoje a consciência é ditada pela decisão da pessoa, que deve ser iluminada por princípios que podem ser inspirados pelas religiões ou por um documento das Nações Unidas sobre direitos humanos. Não deveria nunca ser iluminada nem pelo papa nem pelo Estado – porque correríamos o risco de cair no nazismo, no fascismo e no totalitarismo. Ela deve ser iluminada pela consciência comum”, afirmou ele no texto A ética entre o bem e o mal, que publicamos aquí na ocasião da visita de Bento XVI ao Brasil.
No texto, o sociólogo relembra um encontro acontecido em Paris do papa João Paulo II com a juventude francesa. “Os jovens gritavam e cantavam com o papa. João Paulo II falou da virgindade e de guardar castidade. Mesmo assim, no dia seguinte, nas ruas, havia uma quantidade enorme de preservativos usados pelo chão.”
No caso do aborto, há católicos/as abertos/as a sua descriminalização em algumas ou varias circunstancias. E a oposição da hierarquia eclesiástica à homossexualidade também se contrasta com a população cristã que, segundo diversas pesquisas de opinião, afirma que os gays e lésbicas têm o direito a expressar sua orientação sexual de forma aberta. “O mais significativo é que estas pessoas conciliam o pertencimento a uma religião oficialmente restritiva com uma postura emancipatória da sexualidade”, afirma Juan Marco Vaggione.
Igrejas cristãs inclusivas (congregações evangélicas abertas a gays, lésbicas, travestis e transexuais) e católicos/as a favor da descriminalização do aborto são exemplos de identidades que se articulam políticamente para influir nas distintas instituições religiosas e suas construções sobre a sexualidade, revela o artigo escrito por Vaggione.
Diante da renúncia de Bento XVI, a Rede Latinoamericana de Católicas pelo Direito de Decidir emitiu um comunicado como “convite para pensar nas oportunidades de mudanças e transformações que requer nossa igreja”, como uma demanda sentida pela comunidade cristã de uma igreja inclusiva, ”que promova uma verdadeira renovação e que permita modificar a posição condenatória a respeito da sexualidade e da reprodução humana; respeitar o direito de decidir das mulheres frente a sua livre opção à maternidade e as diferentes formas como os seres humanos se relacionam no amor e assumam que não existe um modelo único, nem ideal de familia”.
Outro exemplo revelador da nova dinâmica em curso é a recente notícia da Igreja alemã que discute o apoio à pílula do dia seguinte em caso de estupro. A inesperada mudança foi sugerida por um cardeal considerado conservador e aliado de Bento XVI, Joachim Meiner, de Colônia. Segundo ele, a pílula não provoca aborto. Depois esclareceu que é uma exceção para o caso de estupro de mulheres não casadas pela Igreja.
Vaggione explica que o ativismo religioso conservador de hoje tem reforçado sua presença instaurando novas estratégias para recuperar (ou em alguns casos não perder) o controle sobre a regulação da sexualidade.
Em 2003, o documento Familia, Matrimônio e Uniões de Fato, escrito pelo Conselho Pontifício para a Família, o Vaticano instou os legisladores através do mundo a opor-se às uniões de pessoas do mesmo sexo e à adoção de crianças por parte de casais gays, posição esta sustentada fortemente no papado de Bento XVI que, em temas relativos à sexualidade e direitos humanos, será lembrado como um dos papas mais conservadores que moldou o caminho doutrinário atual da Igreja Católica.