O Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais (Ministério da Saúde) atualizou, no final de 2013, o protocolo clínico e de diretrizes terapêuticas para o manejo da infecção HIV/Aids em adultos. A medida, que já está em andamento na rede pública brasileira, trouxe como novidade a antecipação do tratamento com terapia antirretroviral (TARV) para todos os pacientes diagnosticados com o vírus, independente da manifestação da Aids e de marcadores clínicos. Até então, a abordagem do Ministério levava em consideração a contagem de células de defesa CD4 (alvo do HIV no organismo) em níveis aceitáveis (acima de 500/mm3) e o monitoramento da carga viral (quantidade do vírus presente no corpo) como critérios para o início do tratamento. A alteração no protocolo de tratamento baseia-se em pesquisas que apontam que a expectativa de vida de pessoas que fazem uso precoce da TARV é a mesma da população geral. Além disso, o novo protocolo destaca que essa abordagem reduz a morbimortalidade e que, mesmo em indivíduos assintomáticos e com contagem de CD4 considerada normal, a replicação do vírus e seus efeitos crônicos causam problemas cardiovasculares. Vários benefícios são citados para justificar a medida, entre os quais está a redução da transmissão do HIV, à qual o Departamento recorre como benefício central para estimular a nova abordagem.
Apresentada por seus méritos quantitativos e por sua finalidade compreensível e lógica, a medida tem repercussões significativas, especialmente quando se leva em conta a dimensão pessoal e subjetiva da soropositividade. Ter HIV não é apenas uma questão biológica, é também uma experiência íntima e coletiva, que envolve sensibilidades, medos, inseguranças, relações interpessoais, estigmas e um contexto social atravessado por desigualdades de diversos tipos.
Dentre os desafios da doença, a medicalização é uma etapa que envolve cuidados. Atualmente, os três principais antirretrovirais (chamados de primeira linha) distribuídos pelo Ministério da Saúde são o tenofovir, a lamivudina e o efavirenz. Compõem o esquema terapêutico com posologia de mais fácil aplicação (4 comprimidos atualmente; sendo que o Ministério da Saúde já começou a distribuir a medicação combinada em apenas 1 comprimido) e com efeitos adversos mais contornáveis. No entanto, os efeitos colaterais existem. Antirretrovirais de segunda linha podem causar a lipodistrofia, que altera a distribuição de gordura pelo corpo, concentrando-a em regiões como barriga e pescoço e fazendo-a faltar em locais como rosto, braços e pernas. A medicação ARV também desregula o metabolismo lipídico no longo prazo, levando ao aumento do triglicérides e do colesterol e, consequentemente, potencializando o risco de doenças cardiovasculares. Os rins e os ossos também podem ser afetados (efeito do tenofovir), assim como a saúde mental (o paciente pode ter ansiedade, insônia e agitação, entre outros problemas).
A médica Débora Fontenelle, doutora em saúde coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ, há anos trata de pacientes vivendo com HIV/Aids. Para ela, medicalizar uma pessoa diagnosticada com o vírus não é uma tarefa simples como pode parecer. Ela destaca, por exemplo, o que chama de marca da Aids, isto é, a manifestação no corpo que o tratamento pode provocar.
“A visão do Ministério da Saúde é interessante: traz uma perspectiva de saúde pública baseada na ideia de testar e tratar. Assim, busca-se evitar novas infecções. A lógica é reduzir a carga viral coletiva de modo que não haja transmissão. No entanto, não podemos perder de vista que tais políticas estão pensando em termos macro. Na ponta, são pessoas que tomam essas medicações, com implicações variadas. Nem todo o paciente sob tratamento com ARVs apresenta efeitos colaterais significativos. Mas muitos apresentam. E é uma questão que não se pode ignorar. Como as pessoas lidam com isso? Que impactos isso terá na vida cotidiana?”, observa Débora Fontenelle, que coordena o grupo Parceiras da Vida (Hospital Universitário Pedro Ernesto/UERJ), voltado para mulheres infectadas e afetadas pelo HIV/Aids .
O efeito subjetivo da Aids é um tema pesquisado pela antropóloga Cláudia Cunha (IMS/UERJ) há anos. Em pesquisa com mulheres soropositivas grávidas e de camadas pobres na Baixada Fluminense, ela identificou que a Aids adquire diversos significados individuais: no dia a dia, as pessoas forjam arranjos criativos e estratégias quando o tratamento é iniciado. O diagnóstico em si, aponta Cláudia, já é um momento específico, pois desperta uma série de sentimentos: ideia de culpa, de medo, de angústia, entre outros efeitos. O tratamento inaugura novas experiências, diante do aparecimento de efeitos colaterais e também dos efeitos na rotina das pessoas. Quando se fala de Aids, fala-se também de moral, o que situa as pessoas com o vírus e a doença em um lugar simbólico específico. Desde o início da epidemia nos anos 1980, a doença está marcada pela ideia de desvio. Por isso, a Aids e seus efeitos são experiências que designam determinados lugares para os sujeitos.
“As pessoas precisam lidar com a imagem de si e com o meio social em que vivem. A medicação pode trazer uma série de sintomas desagradáveis, o que, sobretudo para aquelas pessoas assintomáticas, pode fazer uma grande diferença. Há pessoas que têm o vírus mas não têm a Aids manifestada. Não se sentem, nesse sentido, doentes. E isso é uma qualidade, do ponto de vista subjetivo. Estamos falando da dimensão identitária, da definição e da auto-imagem do indivíduo A medicalização pode ter o efeito de iniciar a experiência de estar doente. É uma questão muito importante. Não se trata de negar a medicalização. Ela também possibilita novas experiências positivas, pois permite maior tempo de vida e melhorias clínicas. No início da epidemia, o diagnóstico era um atestado de óbito. Atualmente, há avanços biomédicos importantes. Mas não podemos ignorar que a lógica da biomedicina não contempla outras dimensões da vida das pessoas”, argumenta Cláudia Cunha.
De fato, o enfrentamento ao HIV/Aids tem obtido avanços valiosos nos últimos anos. A mudança no protocolo do Ministério da Saúde acompanha a conjuntura, baseando-se em trabalhos científicos reconhecidos. Effects of early versus delayed initiation of antiretroviral treatment on clinical outcomes of HIV-1 infection: results from the phase 3 HPTN 052 randomised controlled trial, publicado este ano na prestigiada revista científica The Lancet, é um estudo feito em vários países que demonstra a capacidade da terapia ARV em reduzir a mortalidade e a morbidade e em prevenir a transmissão. O tratamento precoce previne em até 96% os índices de transmissibilidade. O estudo, no entanto, admite que o momento exato e ideal para o início da TARV é desconhecido.
O que Cláudia Cunha pondera é que tais avanços têm efeitos pessoais, ainda mais em um contexto social atravessado por relações de poder e desigualdade. Por exemplo, ela destaca que as pessoas precisam readequar suas rotinas em casa, no trabalho e no ambiente de estudo com o início do tratamento. “Há rupturas do cotidiano. A medicalização gera efeitos colaterais e visuais/estéticos que recriam a imagem da pessoa: como ela vai explicar a situação? Como os parentes, parceiros/companheiros sexuais e amigos de trabalho irão reagir? O que ela vai explicar? Contará sobre a doença? Irá desconversar? Sabemos que a Aids é uma doença marcada pelo estigma. Meu ponto de vista é refletir sobre as negociações e tensões criadas a partir do tratamento. Afinal, a doença, que também começa a ser vivida e sentida a partir do tratamento, produz efeitos subjetivos, levando as pessoas a administrar uma economia de controle sobre o corpo, a saúde e a identidade no seu dia a dia”, afirma Cláudia Cunha.
Dados do Ministério da Saúde indicam que há cerca de 630 mil pessoas vivendo com HIV no Brasil, ressaltando-se as subnotificações que não permitem um retrato fiel da realidade. São pessoas que têm acesso gratuito ao tratamento através da rede pública de saúde. A mudança no protocolo de tratamento, assim, representa um impacto significativo na administração das questões ligadas à epidemia. Serão mais remédios a distribuir, mais pessoas a serem monitoradas pela rede de saúde, mais demanda de profissionais de saúde. Sem levar em conta a variedade de contextos sociais, culturais e econômicos que existem no Brasil. Esse é um dos aspectos que a médica Débora Fontenelle salienta.
“Cada caso tem suas particularidades, a adesão e as resistências ao tratamento estão condicionadas a muitos fatores: a condições de miséria, pois há pessoas que vivem em condições péssimas, em ambientes desestruturados; a matrizes religiosas, que proíbem o tratamento por apostarem apenas na fé como cura; às relações com pessoas próximas diante dos efeitos que a medicação traz. Por outro lado, há pessoas que aceitam o tratamento de maneira fácil, convencidas dos benefícios que este lhe traz. Não estamos lidando com máquinas programadas a obedecer, estamos lidando com pessoas. É importante ter em vista que essa mudança de protocolo tem custos pessoais”, ressalta Débora Fontenelle.
O Manual de Adesão ao Tratamento das Pessoas Vivendo com HIV e Aids, publicado em 2008 e do qual Débora Fontenelle foi uma das autoras, preconiza uma abordagem integral ao processo de medicalização. A adesão ao tratamento é fundamental, pois quando é insatisfatória, pode gerar resistência viral e limitar as opções terapêuticas. Nesse sentido, a adesão envolve muitos fatores, como questões físicas, psicológicas, sociais, comportamentais. Isso significa que estão em jogo o contexto em que a pessoa vive, mora, trabalha, estuda, suas relações interpessoais, suas limitações, fragilidades, hábitos, necessidades. São aspectos que demandam cuidado integral, atenção a vulnerabilidades específicas. O apoio é essencial nesse processo. “É esse contexto que o novo protocolo não pode ignorar. A adesão é um processo desafiador, contínuo e particular. Em contextos de pobreza e miséria, com cenários culturais e econômicos diferenciados, com relações sociais marcadas por desigualdades de gênero, raça, idade, poder aquisitivo, a doença exprime significados diferenciados. Portanto, os protocolos de saúde devem estar atentos para todas as tensões que envolvem os pacientes”, afirma Cláudia Cunha.
Para Débora Fontenelle, a questão da adesão é apenas um dos desafios do novo protocolo. “Estamos falando de milhares de pessoas que passarão a tomar a medicação antirretroviral. Preocupa-me também o possível efeito de culpabilização. A indicação para administração de ARV em toda pessoa com o vírus pode jogar sobre o paciente a responsabilidade pelo tratamento. Afinal, estando disponível na rede pública e sendo uma norma do governo, parece que o tratamento é uma atribuição apenas da pessoa”, observa Débora Fontenelle, que projeta uma série de desafios com a mudança no protocolo. “É preciso reconhecer que o tratamento é um recurso importante. No entanto, a doença é uma experiência muito particular. Como será o acompanhamento desse contingente de pessoas? Quem vai monitorá-las? Que tipo de atenção será oferecido? Como será o processo de adesão? Como a rede pública vai absorver tantas pessoas? Há infraestrutura que suporte? Acredito que temos muitos desafios pela frente”, finaliza.