CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Trabalho como potência

O mercado laboral é um espaço generificado. Há profissões que estão socialmente vinculadas a determinado gênero, como se fosse algo natural. Nesse sentido, as identidades trans vivem sob o regime dos conflitos. Ao longo de sua trajetória acadêmica, as questões que envolvem saúde e trabalho têm sido uma preocupação constante para Guilherme de Almeida, professor da Faculdade de Serviço Social da UERJ, em especial, pela dimensão médica que a transexualidade traz; afinal, tal identidade é considerada um transtorno psiquiátrico pelas diretrizes internacionais de saúde (Organização Mundial da Saúde) e pelo Estado brasileiro, que condiciona as modificações corporais ao diagnóstico e ao percurso de dois anos no processo transexualizador, oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e finalizado com a redesignação genital.

“O trabalho tem um papel simbólico fundamental na vida das pessoas. Ultrapassa a questão de aquisição de renda e manutenção de necessidades básicas. Através dele, as pessoas se inserem em uma rede de socialização e apoio que também ultrapassa a dimensão do trabalho e inclui outras questões da vida das pessoas. Nesse sentido, o trabalho indica também o posicionamento da pessoa no mundo”, observa Guilherme de Almeida, que passou a desenvolver pesquisa a partir de uma série de questões que o inquietavam, tais como: Como as pessoas trans são aceitas no ambiente de trabalho? De que forma a transição entre os gêneros impacta na mobilidade profissional? Que peso a definição patológica da transexualidade adquire? Qual o significado subjetivo do trabalho? Como as identidades são negociadas no cotidiano?

Segundo ele, o cotidiano das pessoas que passaram ou passam pela transexualização destaca-se, em muitos momentos, por conflitos dos mais diversos. As relações com a chefia, o uso dos espaços do ambiente de trabalho, como o banheiro, a escolha da roupa, seja em um trabalho uniformizado ou não, são questões que compõem um conjunto de momentos em que a identidade é negociada. Nesse contexto de “micro-conflitos”, Guilherme de Almeida ressalta que o setor público e o privado apresentam diferenças. “No setor público, a questão é encarada de uma maneira melhor. A condição de estabilidade traz certa sensação de segurança. No entanto, no meio privado, geralmente tais conflitos têm como desfecho a demissão ou a auto-demissão”, aponta o professor de Serviço Social.

A relação público-privado, argumenta, também está na origem do trabalho informal que ronda os indivíduos trans. No Brasil, a modificação do nome civil só é possível após a finalização do processo transexualizador. Passado os dois anos, o indivíduo tem que entrar na justiça para demandar a alteração no registro, na medida em que ainda não há legislação que regulamente e facilite o trâmite, apesar de o Congresso estar atualmente tratando do tema. O projeto de lei 72/2007, apesar de pensado para "evitar constrangimentos e equívocos sobre a verdadeira situação do identificado", conforme argumentou o relator do projeto senador Eduardo Suplicy (PT-SP), divide opiniões: pesquisadores e ativistas criticam o fato de a mudança ainda depender de laudo médico, confirgurando, portanto, uma tutela que desconsidera a autonomia do indivíduo em definir sua própria identidade.Tem sido comum que as pessoas que passam pelo setor de saúde privado para realizar as modificações não tenham reconhecido o direito a mudar o nome. O processo oferecido no Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS) parece gozar de maior credibilidade no sistema judiciário. “É como se para a justiça, quem não tiver a chancela do serviço público possa não ser um transexual”, afirma Guilherme de Almeida.

Surge, assim, um complicador na trajetória profissional da pessoa. “O reconhecimento da identidade é um divisor de águas. Nos casos em que o reconhecimento é negado, é como se a pessoa fosse ilegal, como se ela não estivesse dentro de uma ordem legal. Assim, ela vai para a informalidade”, observa Guilherme de Almeida. Tal fato gera mais efeitos prejudiciais. “Ao entrar na informalidade, a pessoa fica desprotegida, do ponto de vista trabalhista. Assim, caso ela realize outras modificações e cirurgias, não tem o direito a auxílio doença, prejudicando sua renda”, completa.

A questão do reconhecimento é um aspecto fundamental na pesquisa do professor da Faculdade de Serviço Social. Mais do que ingressar no mercado de trabalho, importa para ele a permanência da pessoa e como irá transcorrer. “Este é o maior desafio. Todo mundo espera ser reconhecido, estabelecer relações de igualdade, participar dos ritos de lazer e confraternização. No caso das pessoas trans, é o grande conflito. Como será a inserção dessa pessoa? Não adianta apenas garantir a não discriminação, é importante trabalhar para fazer a pessoa pertencer àquele grupo”, afirma Guilherme de Almeida. “Na pesquisa, tenho refletido sobre os processos que se desenvolvem no interior do grupo. Trabalho com a hipótese de que o não reconhecimento está na origem da evasão dessas pessoas. Ainda que a discriminação não ocorra, as pessoas trans não são aceitas, sendo muitas vezes exotizadas. Há um empobrecimento da imagem da pessoa, e isso caracteriza uma lenta expulsão. Aos poucos, ela vai sendo eliminada”, explica Guilherme de Almeida.

Fato que não ocorreu com ele. “As minhas modificações corporais vieram em um momento em que minha trajetória profissional já gozava de reconhecimento. Estar na academia é ocupar um lugar privilegiado na divisão sócio-técnica do trabalho. Assim, isso contribui para construir um lastro de respeitabilidade. Tenho maior liberdade para me exprimir, assim como estou em contato contínuo com recursos teóricos e políticos que ajudam”, reconhece.

O pesquisador, entretanto, ressalta: “Posso ter escapado de conflitos mais difíceis, mas não me livrei de todos. Meu caso não pode ser generalizado”, completa. De fato, o cotidiano das pessoas trans é permeado por conflitos diários no mercado de trabalho. Isso quando há a contratação. Pesquisa da Associação das Travestis e Transexuais do Triângulo Mineiro (Triângulo Trans) revelou que apenas 5% dos/das transexuais e das travestis de Uberlândia estão no mercado de trabalho formal. Dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) mostram que 90% dessa população estão fora do mercado de trabalho formal, recorrendo à prostituição como meio de vida. Uma das respostas que foram criadas para a situação partiu da ativista trans de São Paulo Daniele Andrade, que criou o site Transempregos, destinado a facilitar o contato dos indivíduos trans com o mercado formal.

Para além do preconceito social, há um dado também importante que afeta a realidade trans nas relações de trabalho. A condição patológica da transexualidade ganhou destaque nas últimas semanas no Rio de Janeiro com a notícia de que uma funcionária pública sofrerá aposentadoria compulsória. Bruna, 33 anos, tem passado por transformações hormonais para adquirir características femininas. No entanto, não pretende realizar a mudança genital. Por isso, pelas diretrizes médicas, é considera portadora do transtorno de identidade de gênero. Logo, incapaz para desempenhar sua função como trabalhadora.

Para Guilherme de Almeida, eis um dos efeitos perversos da patologização da transição entre os gêneros. “O fato de a transexualidade ser considerada uma doença tem o lado prático que é o de abrir as portas para o SUS. É preciso, portanto, um trabalho político persistente para garantir o direito às modificações sem ser pela via da patologização, pois isso traz uma conseqüência grave para a dignidade da pessoa. O fato de ser doença é usado como uma forma de questionar a competência do sujeito. Isso é perigoso, pois consiste também em uma forma de exclusão. A tutela do Estado rotula o indivíduo para o resto da vida, como se ele fosse inapto ao trabalho. E sabemos que o trabalho é um fator de prestígio importante no cotidiano. Estar incapacitado para o trabalho tem efeitos simbólicos fortes em termos sociais”, argumenta Guilherme de Almeida.

Além dos efeitos sociais mais evidentes, a pesquisa do professor de Serviço Social procura discutir os significados subjetivos do trabalho na vida das pessoas. O caso de Bruna deixou claro que a cidadania também passa pelo lugar que ocupa nas relações de trabalho. A funcionária demonstrou contrariedade com a eminente aposentadoria. Para Guilherme de Almeida, os processos de transição são vividos individualmente. Cada pessoa desenvolve suas estratégias de negociação. Cada pessoa lida com os conflitos de maneiras distintas. “O contexto social em que vivemos apresenta uma lógica de descarte, isolando os indivíduos trans do mercado de trabalho. Minha pesquisa procura refletir justamente sobre o papel do trabalho na vida dessas pessoas. Acredito no trabalho como potência, como um domínio que pode contribuir para a transição. Estar num trabalho em que se sente produtivo, que seja inspirador, que traga comporte reconhecimento, pode tornar a mudança mais suave. Veja, por exemplo, a luta que os portadores de deficiência mantiveram para serem incluídos no mercado de trabalho. Por que fizeram isso? Certamente, porque o trabalho é importante para a vida deles, remete à dimensão criadora, incorpora prestígio e valor”, conclui Guilherme de Almeida.