CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Transformações por vir

por Manuel Alejandro Rodríguez Rondón



com Fábio Grotz (Brasil)

Franklin Gil Hernández (Colômbia)

Pilar Pezoa (Chile)

Andrea Lacombe (Argentina)

Tradução: Washington Castilhos


A participação das mulheres latino-americanas e caribenhas em programas de doutorado e em pesquisa é singular, comparada a outras regiões do mundo, segundo o Informe Mundial de Educação 2010 (Global Education Digest 2010) da UNESCO. Enquanto em outras regiões os programas de doutorado e o campo das pesquisas estão marcados por uma forte assimetria a favor dos homens, na América Latina e no Caribe os índices de participação feminina são muito menos desbalanceados em relação aos índices de participação masculina.


Em nível mundial, a proporção de mulheres que ascendem à educação superior é similar à dos homens nas graduações e mestrados, mas em se tratando de doutorado a proporção muda. Na graduação, os homens representam 51% dos graduados e as mulheres 49%. No mestrado, elas representam 56% do total, mas no doutorado os homens ostentam um índice de 56% dos títulos e de 71% dos cargos de pesquisa.

Na América Latina e no Caribe cerca de 60% dos estudantes de graduação são mulheres. A representação feminina cai para 47% no mestrado, mas sobe para 49% no doutorado. Em pesquisa, as mulheres da região ocupam 46% dos cargos, enquanto na média mundial alcançam apenas 29%. A Ásia é a região que apresenta o menor índice de participação feminina em pesquisa, com apenas 18%.

Apesar de ainda se apresentarem disparidades, durante as últimas décadas a região experimentou uma grande expansão na educação formal. De acordo com Gloria Bonder, fundadora do Programa Interdisciplinar de Estudos das Mulheres, da Universidade de Buenos Aires, paralelamente a esse aumento, tem se observado um incremento na participação feminina na educação superior. Em seu artigo Mujer y Educación en América Latina: hacia la igualdad de oportunidades (1994), a psicóloga afirma que até 1950, com exceção da Costa Rica, de Cuba, do Panamá e do Uruguai, “a porcentagem de mulheres nos níveis superiores na maioria dos países latino-americanos era inferior a sua participação demográfica na população total”. Posteriormente, entre 1970 e 1985, registrou-se um incremento de 15%, o que faz com que elas ocupem 45% das vagas das universidades.



Seguindo uma tendência mundial iniciada na Europa Central e Oriental na década de 1970 e na América do Norte e Europa Ocidental nos anos 80, na América Latina e no Caribe a partir da década de 1990 a taxa de participação feminina na educação universitária passou a superar a masculina. Na Ásia, esta mudança se registrou a partir da primeira década do segundo milênio (UNESCO, 2010).



Cabe saber, no entanto, se tais mudanças refletem um acesso equitativo para as mulheres. Para tanto, faz-se necessário distinguir ‘paridade de gênero’ e ‘equidade de gênero’. “A paridade de gênero é apenas o primeiro passo na direção da equidade de gênero”, destaca o informe da UNESCO.



Paridade educativa na América Latina

Em seu artigo El acceso de las mujeres a la educación universitaria (2006), a socióloga argentina Alicia Itatí Palermo distingue dois períodos que marcam o acesso das mulheres à universidade: no primeiro, algumas mulheres ingressaram excepcionalmente na universidade, seja porque sua origem aristocrática lhes concedeu esta possibilidade, ou porque se “infiltraram” nas universidades fazendo-se passar por homens; o segundo período tem início com a abertura sistemática da educação universitária às mulheres, coincidindo com as lutas feministas do século XIX por igualdade de direitos entre homens e mulheres. Esse processo de abertura teve início nos Estados Unidos na década de 1830 com a criação das primeiras escolas de medicina para mulheres, e posteriormente se expandiu para a Europa e para a América Latina, onde as transformações aconteceram no final do século XIX. “As décadas de 1870 e 1880 foram decisivas para a região”, afirma a historiadora Karin Sánchez Manríquez no artigo El ingreso de la Mujer Chilena a la Universidad y los Cambios en la Costumbre por medio de la ley 1872-1877.

Ao longo do século XIX, cinco países da região concederam o acesso às mulheres nas universidades: Brasil, México, Chile, Cuba e Argentina. No Brasil, este direito foi garantido a partir de 1879. Em 1887, Rita Lobato Velho Lopes, tornou-se a primeira mulher brasileira a concluir seus estudos superiores. Outras conterrâneas já o haviam feito nos Estados Unidos.



A medicina foi uma das primeiras carreiras profissionais desempenhadas pelas mulheres tanto no continente americano como no resto do mundo. Apesar das dificuldades que enfrentaram para ganhar respeito em uma instância até então exclusivamente masculina, a vinculação histórica do feminino com o cuidado dos filhos e do esposo no lugar contribuiu para que elas fossem consideradas aptas para esta profissão. Em 1889, foi admitida em um tribunal a primeira mulher advogada. Com o tempo, as mulheres brasileiras foram profissionalizando-se e engrossando as listas da população economicamente ativa (PEA), particularmente a partir da segunda metade do século XX. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na década de 1950 elas representavam 13,6% da PEA, e em 2008 alcançaram 52,2% desta população.


Nos últimos anos, o Brasil alcançou avanços significativos na luta contra a desigualdade de gênero no âmbito educativo. Com uma média de 7,3 anos de estudo, as mulheres superaram a média de escolaridade dos homens, que se mantém em 6,8 anos. No livro Doutores 2010: Estudos da demografia da base técnico-científica brasileira, o Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE) do Ministério de Ciência e Tecnologia revela que em 2004 se doutoraram 4.085 mulheres, que representam 50,4% dos que obtiveram esse título superior, frente a 3.991 homens, que representam 49,6%. Desde então, as mulheres mantêm a dianteira na obtenção de títulos de doutorado naquele país. Este ano representou também a entrada do Brasil no grupo dos poucos países onde as mulheres formadas como doutoras não são minoria. Dados do Gabinete de Estatísticas da União Européia destacam que no Velho Continente apenas Portugal e Itália integram este grupo. Apesar destas conquistas, a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho ainda escapa às mulheres.

Na Argentina, a educação das mulheres foi coberta pelas bibliotecas populares até o século XIX. Em 1869, o Congresso autorizou a criação das Escolas Normais, e em 1870 foi fundada a primeira Escola Normal Mista em Buenos Aires. O magistério foi um dos primeiros trabalhos considerados “dignos” para as mulheres em todo o mundo e uma das profissões mais feminilizadas na atualidade. A estreita vinculação deste ofício com o gênero feminino se fundamenta nos papéis de educadora e reprodutora que a cultura tem historicamente reservado às mulheres.

No final do século XIX, as mulheres argentinas precisavam de uma permissão especial do Reitor para ingressar nas universidades. De acordo com a diretora do Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Buenos Aires, Graciela Morgade, “Se duvidava de sua capacidade intelectual, de sua possibilidade para tomar distância, de ser objetivas, de aprender. Se duvidava, em suma, de sua capacidade para resistir no âmbito universitário”.

O desenvolvimento observado na década de 1960 impulsionou o fortalecimento das escolas técnicas e se deu um processo de sistematização do ensino médio e de democratização das universidades, com a incorporação massiva de mulheres, que alcançaram 30% do corpo discente. Na década seguinte, passaram a representar 40% e atualmente são maioria, ocupando 57% do corpo universitário.

O Chile permitiu o ingresso das mulheres na educação superior em 1877, mediante o “Decreto Amunátegui”, assim batizado em homenagem a Miguel Luis Amunátegui, Ministro da Educação Pública, que emitiu a norma. As primeiras mulheres só ingressaram na universidade quatro anos depois. Até 1970 o país experimentou um ingresso massivo de mulheres no nível superior, que se prolongou pelos seguintes 40 anos, alcançando um crescimento exponencial a partir do final da década de 1980.

O acesso das mulheres às universidades chilenas está estreitamente vinculado à democratização da educação naquele país. A esse respeito, a socióloga chilena Teresa Valdés destaca a importância das reformas educativas introduzidas por Eduardo Frei durante seu governo (1964-1970), que buscaram garantir o acesso à educação de chilenos e chilenas sem importar o nível socio-econômico a que pertenciam. O custos da matrícula na universidade eram proporcionais à renda familiar, o que permitiu que pessoas de estratos pobres pudessem estudar gratuitamente. Esta situação mudou sob a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), cujo modelo educativo decretou que as universidades deviam auto financiar-se. Segundo Valdés, isto levou à desarticulação da Universidad de Chile e ao decréscimo no número de matrículas, tanto de mulheres como de homens.

Na década de 1990, um conjunto de políticas buscou ampliar novamente o acesso à educação superior, com a criação de universidades e institutos de educação superior privados, o que permitiu um novo crescimento no número de matrículas e um melhor acesso para as mulheres. “Durante o governo de Michelle Bachelet (2006-2010) houve uma melhora na educação do país mediante um incremento em dois anos do processo de escolarização. Estudos têm sinalizado que chegar à universidade é uma aspiração cada vez mais frequente entre as meninas”, afirma a socióloga chilena. Sobre a tendência observada a que as mulheres sobrepassem o nível educativo dos homens, Valdés comenta que “o fato de os homens terem um nível educativo mais baixo está relacionado principalmente com o abandono escolar para trabalhar, realidade que também se apresenta no Brasil”.

Na Colômbia, “o processo de abertura sistemática da educação superior às mulheres foi marcado pela mudança da hegemonia conservadora para a liberal durante a década de 1930 e foi o resultado das lutas de mulheres”, afirma a socióloga colombiana Luz Gabriela Arango.

“Em dezembro de 1934”, assinala a professora da Universidad Nacional de Colombia María Himelda Ramírez, “tramitou no Congresso da República um projeto de lei para que as mulheres pudessem ascender à universidade em igualdade de oportunidades que os homens. A pesar da grande controvérsia que isto suscitou, o projeto foi aprovado e a Universidad Nacional de Colombia se converteu na primeira instituição a abrir suas portas às mulheres”, relata a pesquisadora. Através da criação de faculdades femininas, as mulheres mantinham un lugar subordinado. Em seu livro Jóvenes en la Universidad. Género, clase e identidad profesional, Arango afirma que as faculdades femininas foram criadas como modo de potenciar “os efeitos positivos da educação profissional feminina sobre as relações conjugais e o exercício da maternidade” (2006:76). Esta afirmação é válida para o contexto colombiano e também para o processo de abertura da educação superior para as mulheres no mundo.

De acordo com a pesquisadora, na Colômbia o aumento do ingresso de mulheres foi concomitante com o crescimento da universidade, que teve início na década de 1950. O número de mulheres rapidamente igualou-se ao dos homens. “De 2.990 estudantes universitários em 1940 passou-se a mais de 20.000 em 1960 e a cerca de meio milhão em 1985. Uma das características de maior impacto social desta expansão é a notável participação da mulher, que alcançou, em 1983, 46% das matrículas, e em 1990, 52%” (2006: 70). No entanto, em relação ao doutorado, os homens continuam prevalecendo, com uma porcentagem de 72% dos 345 doutorandos do país no ano 2000.

Maior equidade de gênero?

Numerosas pesquisas sustentam que, apesar destes avanços, ainda persistem orientações profissionais e áreas educativas, como a medicina, fortemente associadas ao gênero feminino. Teresa Valdés afirma que a diferenciação das escolhas profissionais segundo o gênero está estreitamente vinculada à socialização na educação básica e primária. A pesquisadora chilena assinala que provas de rendimento segundo o sexo pretendem demonstrar que as mulheres têm maiores aptidões nas áreas de línguas e comunicação, enquanto que nas matemáticas e ciências seu rendimento é baixo. Os resultados dos homens são o contrário. No entanto, em países como a Australia, estas provas não têm mostrado qualquer diferenta por sexo em relação ao rendimento de homens e mulheres, o que evidencia o papel da socialização de gênero neste tema.

“A construção desta ordem de gênero se inicia desde o berço e logo se mantém. As conseqüências se vêem no mercado de trabalho. O preconcepto de que as mulheres são ruins em matemáticas acaba sendo uma profecia auto-cumprida. As mulheres se candidatam menos a essas carreiras”, afirma Valdés.

Para Estela Díaz, coordenadora do Centro de Estudios Mujeres y Trabajo de la Argentina (CEMYT), a educação segue sendo uma profissão altamente feminilizada por reproduzir o papel das mulheres como educadoras naturais. Neste contexto, afirma, “a educação é uma opção profissional e trabalhista para as mulheres”. No que tange as escolhas masculinas, Arango assinala que os homens escolhem geralmente carreiras “que conduzam ao poder, ao controle da natureza e os negócios”.

Teresa Valdés explica que apesar de na América Latina as mulheres terem melhores níveis educacionais que os homens, elas ocupam os níveis mais baixos nas hierarquias do mercado de trabalho. Na medida em que aumenta o nível hierárquico, diminui a participação da mulher nos cargos. Atividades associadas às telecomunicações são marcadamente feminizadas, no entanto, os cargos de chefia são ocupados por homens. “Isto é particularmente visível no setor privado, marcadamente segmentado. Em relação á educação e à saúde ocorre algo similar. A maioria dos profissionais é mulher, mas são poucas as diretoras de escolas, reitoras de universidades ou chefes de serviços de saúde”, afirma Valdés.

Na Argentina, de 107 universidades nacionais, apenas 11 são presididas por reitoras. Segundo um estudo do economista colombiano Juan David Barón sobre as diferenças de gênero nos salários dos graduados na Colômbia, tais diferenças podem oscilar entre 5% e 25% em detrimento da mulher. O especialista explica que por áreas do conhecimento percebe-se uma brecha importante em áreas como economia, agronomia, ciências da saúde e engenharia, onde os salários entre homens e mulheres apresentam diferenças de 16,9%, 12,8%, 11% y 10,2%, respectivamente, sempre os homens sendo melhores remunerados. Em áreas como artes e matemáticas, a diferença salarial é de 0,2% e 4,3%, respectivamente.

As diferenças salariais no Brasil não correspondem aos níveis de escolarização de homens e mulheres. De acordo com dados do IBGE, as mulheres superam os homens nas faixas daqueles que ganham um salário mínimo (26,9% y 14,9%, respectivamente) e entre um e dois salários mínimos (42,5% mulheres, 40,9% homens). Na medida que os ingressos aumentam, as mulheres se convertem em minoria enquanto os homens lideram todas as faixas acima de três salários mínimos.

Além dos aspectos até agora assinalados, é preciso levar em consideração outros elementos que afetam o bem-estar social e econômico de homens e mulheres de maneira diferencial. A esse respeito, Valdés destaca as consequências dos cruzamentos de classe, raça e geração segundo o gênero; as barreiras que dificultam a inserção no mercado de trabalho associadas ao aspecto físico, que afetam em maior medida a mulheres que a homens; e a maternidade.

Por isso, é necessário complexificar a mirada sobre a equidade de gênero e a educação, de tal forma que permita desenvolver e implementar ações e políticas efetivas em matéria de equidade de gênero. Essas transformações ainda estão por vir.

Referências citadas

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