Na França, a transexualidade saiu da categoria de transtorno de identidade de gênero (TIG), mas continua a ser classificada como transtorno da identidade sexual no manual CID-10 da Organização Mundial de Saúde (OMS). Em 2009, o Ministério da Saúde francês encomendou ao Inserm (Instituto Nacional de Pesquisa e Pesquisa Médica) a pesquisa “Trans: Identidades e percursos de transição”, para desenvolver um estudo sobre o fenômeno “trans” e investigar a articulação entre transexualidade e AIDS. No último dia 9 de novembro, o psicossociólogo francês Alain Giami apresentou, no CLAM, os primeiros resultados do estudo, os quais serão publicados em breve no boletim oficial do Ministério da Saúde francês (Bulletin Epidemiologique Hebdomadaire n° 42, 2011).
A pesquisa qualitativa preliminar foi feita com informantes-chave, incluindo os profissionais do sexo, grupo mais atingido pela Aids, que responderam a aspectos sócio-demográficos e a questões sobre saúde e comportamento sexual, e relataram sua história do percurso de transição médico-psicológico.
A questão sobre a auto-definição da identidade de gênero foi construída a partir de 200 respostas qualitativas obtidas: 50% dos entrevistados identificaram-se como “homem” ou “mulher”, 25% como “homem trans” / “mulher trans” e 12% como “trans”. Somente 30% da população entrevistada afirmou ter se submetido à cirurgia de transgenitalização sexual (a cirurgia não era necessária para se responder ao questionário, que era aberto a todas as categorias de pessoas trans).
“O objetivo da pesquisa era justamente poder identificar a variedade de identidades de gêneros e os tipos de percursos médicos e psicológicos que estavam associados a tais identidades”, explicou Giami.
Segundo ele, a identidade trans na França abarca várias expressões, como transexual, transgênero e transidentidade.
“O termo «transexuais» é usado, sobretudo, por médicos e por uma categoria de pessoas que foram operadas. Pessoas ligadas a ONGs se auto-designam como «transgêneros» (transgender). O termo travesti não é usado na França, salvo para designar um grupo reduzido de homens que se vestem de mulheres no mundo do espetáculo ou de modo provisório, sem desejar mudança de gênero permanente. As travestis brasileiras, que agrupam uma grande parte das pessoas trans no Brasil e são muito ativas na esfera política pela defesa de direitos, constituem um grupo cultural que não tem equivalência na França (com exceção das travestis brasileiras imigrantes no país). Temos assim dois grupos principais: os transgêneros e os transexuais. Em relação às cirurgias de redesignação de sexo, os transgêneros recorrem menos frequentemente a esse tipo de operação”, assinalou o pesquisador.
O estudo buscou distinguir as experiências do processo de transição, tentando assim identificar os tipos de trajetórias que as pessoas haviam percorrido. Estabeleceu-se um modelo de percurso que compreende as seguintes etapas: a demanda de certificado psiquiátrico; o uso de hormônios; o uso de operações cirúrgicas de modificação corporal e a obtenção de mudança na identidade civil.
A pesquisa mostra que as pessoas que se reconhecem plenamente no outro sexo (em relação ao sexo atribuído ao nascer) completaram mais frequentemente todo esse percurso. Entretanto, ao mesmo tempo, apenas pouco mais da metade dos que se identificaram como «homens» e «mulheres» cumpriram a trajetória completa.
“Isso significa que a realização da cirurgia de redesignação sexual não constitui mais o indicador central da transexualidade como acontecia nos anos 60. Podemos «mudar de sexo» sem passar por uma cirurgia. A instituição jurídica começa a compreender essa mudança em alguns países europeus. Na Espanha e no Reino Unido não é mais necessário realizar tais operações para se beneficiar da mudança na identidade civil”, relatou Giami.
De acordo com a pesquisa, a epidemia da Aids tem afetado de modo altíssimo as mulheres trans (male-to-female).
“A infecção pelo HIV toca principalmente as mulheres trans (MtF), especialmente as migrantes e trabalhadoras do sexo. Dentro desse grupo, encontramos uma prevalência elevada, da ordem de mais de 30%, o que confirma os dados da literatura internacional sobre o assunto”, salientou o coordenador do estudo.
Em sua palestra, Alain Giami chamou a atenção para o fato de que um grupo de atores do mundo trans considera que a transexualidade não é resultado de uma forma de parafilia (de perversão sexual), que consistiria em obter prazer vendo-se no outro sexo. O conceito de autoginecofilia elaborado pelo psicólogo Ray Blanchard busca dar conta dessa dimensão da transexualidade, que resultaria assim em um tipo de ‘prazer sexual perverso’.
“A maioria dos psiquiatras na Europa prefere trabalhar com a noção de sofrimento, enquanto as associações trans preferem tratar a questão em termos de ‘direitos’. Então, temos de um lado o sofrimento e de outro, os direitos, excluindo a questão do erotismo da identidade de gênero, e a sexualidade se transforma em tabu. Existem assim poucos trabalhos sobre os comportamentos sexuais e a vida sexual dessas pessoas, sobre as quais conhecemos pouco. Nossa pesquisa tentou abordar tais questões”, afirmou Alain Giami.
Na França, como no Brasil, o protocolo médico-psicológico de transição de gênero é fortemente inspirado nas recomendações formuladas pela WPATH (World Professional Association for Transgender Health). No Brasil, esse protocolo inclui dois anos de acompanhamento médico-psicológico antes da liberação de um certificado que permita o começo do “tratamento” no setor público de saúde (SUS). As associações Trans denunciam esse constrangimento, que consideram como um atentado ao direito de dispor de seu próprio corpo e denunciam também a obrigatoriedade de se passar por uma avaliação psiquiátrica anterior para que o transtorno mental seja declarado.
“Reconhece-se, no entanto, que as pessoas trans necessitam de melhor acesso a cuidados e acompanhamento psicológico, que as ajudem a esclarecer suas questões subjetivas ligadas ao gênero”, concluiu o pesquisador.
Referência do estudo:
Alain Giami, Emmanuelle Beaubatie, Jonas Le Bail. Caractéristiques sociodémographiques, identifications de genre, parcours de transition médicopsychologiques et VIH/sida dans la population trans. Premiers résultats d’une enquête menée en France en 2010. Bulletin Epidémiologique Hebdomadaire, n° 42, pp. 433-437.