A Conferência Regional de População e Desenvolvimento (CRPD), que ocorreu na semana passada (12 a 15/08) no Uruguai, dividiu seus olhares entre o passado e o futuro: com o objetivo de analisar os desdobramentos relativos às diretrizes e ações propostas pelo Programa de Ação do Cairo (1994), o encontro consistiu em um espaço de reflexão e definição de saídas para as lacunas que persistem nessas duas décadas na América Latina no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos, raça, juventude, envelhecimento, migração e povos indígenas.
A referência ao princípio da laicidade como um dos elementos fundamentais para o pleno exercício dos direitos humanos e o aprofundamento da democracia, e a obrigação dos Estados – onde o aborto for legal ou descriminalizado – de assegurar a disponibilidade de serviços de aborto seguro para as mulheres com gravidezes indesejadas, bem como de desenvolver medidas para prevenir e evitar o aborto inseguro, são alguns dos pontos importantes do documento final, que servirá de referência para as próximas conferências até 2014.
Intitulado “Consenso de Montevideo sobre População e Desenvolvimento”, o documento final representa um “marco para a agenda do Cairo”, de acordo com Beatriz Galli, relatora nacional do Direito à Saúde Sexual e Reprodutiva da Plataforma Dhesca Brasil e integrante do corpo de delegados brasileiros na Conferência. Várias medidas prioritárias são delineadas como demandas aos Estados latino-americanos.
“O texto final traz alguns avanços importantes e incorpora novas diretrizes em matéria de direitos sexuais e reprodutivos. Por exemplo, define claramente o direito à orientação sexual e à identidade de gênero, reconhecendo que essa pode variar. Nesse sentido, podemos dizer que a agenda do Cairo ganhou conteúdos mais progressistas”.
A Conferência Internacional de População e Desenvolvimento do Cairo lançou bases paradigmáticas para os direitos humanos, buscando princípios e medidas em benefício da população. Para tanto, o espectro de temáticas foi amplo, alcançando áreas como educação, saúde, meio ambiente, pobreza, entre outros. Em linhas gerais, a Conferência de Cairo procurou definir tais questões tendo como norte a igualdade e a autonomia, preocupando-se com as distintas assimetrias sociais que marcam as sociedades.
A agenda do Cairo nasceu com o propósito de reduzir as desigualdades sociais e geracionais e de promover a saúde. Nesse sentido, as dimensões sexual e reprodutiva da vida consistiram em aspectos largamente discutidos, sendo encarados como assuntos individuais, de livre-escolha, aos quais os Estados passariam a ter o dever de prover condições dignas de garantia e não mais a prerrogativa de controlar e manipular por razões políticas, econômicas e demográficas. Geralmente, tais justificativas implicavam em métodos coercitivos. Houve, com o Plano de Ação do Cairo, uma ruptura conceitual: a visão sobre população passou a ser centrada nas pessoas, nas suas relações sociais e nas práticas cotidianas, religiosas e culturais. A preocupação com a mortalidade infantil e materna, a expectativa de vida e a fecundidade entrariam no rol dessas garantias. Por isso, o direito à informação, à educação, ao aborto seguro, à contracepção, à não-discriminação, entre outros aspectos, passaram a ser princípios centrais nas discussões sobre desenvolvimento e população.
Os direitos sexuais e reprodutivos tornaram-se princípios a nortear os 179 signatários do Plano do Cairo. A história tem mostrado alguns avanços, ainda que barreiras permaneçam, tendo em vista os índices e as dificuldades de incorporar plenamente tais princípios como linguagem normativa e jurídica. A América Latina, que permanece como a região mais desigual do planeta, com elevados índices de pobreza, tem experimentado progressos. No entanto, permanece longe de patamares aceitáveis de saúde sexual e reprodutiva. Uma das ações mais notórias que resultam do processo político lançado no Cairo são as metas do milênio, estipuladas no ano 2000 pela Organização das Nações Unidas e que definem alguns objetivos relacionados a determinados problemas crônicos a serem alcançados até o ano 2015.
Um ponto que Beatriz Galli considera importante no texto final da CRPD é a defesa da laicidade do Estado, descrita como fundamental para o exercício pleno dos direitos humanos e para a eliminação da discriminação contra as pessoas. “A consolidação da laicidade é fundamental, especialmente por causa de esforços e pressões conservadoras e dogmáticas que continuamente buscam suprimir ou impedir avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos”, observa Beatriz Galli, chamando a atenção para o cenário brasileiro recente de avanço de setores religiosos em espaços políticos.
Países com postura tradicionalmente conservadora, como o Chile, a Nicarágua e Honduras não lograram muito sucesso na Conferência Regional. Acabaram concordando com a tendência geral de proposições progressistas capitaneadas por Cuba e Uruguai. O governo brasileiro, que nos últimos anos, no âmbito interno, tem recuado nas temáticas que envolvem sexualidade, gênero e reprodução, mostrou-se favorável e propositivo. “Houve uma mudança na postura do governo brasileiro. A delegação dos ministérios esteve aberta às demandas da sociedade civil brasileira, que se posicionou publicamente ao lado de outros movimentos latino-americanos. De fato, houve um consenso entre as delegações”, relata Beatriz Galli.
Até mesmo na questão do aborto houve apoio do Brasil a uma perspectiva não criminalizante e acolhedora, indo na contramão da tendência adotada pelo governo brasileiro nos últimos anos nos fóruns internacionais. O documento final pede, como medida prioritária, a modificação de leis que penalizam o aborto, instando os Estados a considerar políticas e estratégias de interrupção voluntária da gravidez para salvar a vida e a saúde das mulheres e adolescentes, melhorando a sua qualidade de vida e diminuindo o número de abortos. Percebe-se assim que os direitos dos jovens e das mulheres também foram aspectos privilegiados no documento final. A perspectiva adotada foi a de implementar programas de saúde sexual e reprodutiva de maneira integral, jogando luz sobre problemas como a gravidez na adolescência, o aborto inseguro, a educação e o acesso à informação precários, entre outros.
“São demandas que a realidade apresenta e as instituições precisam dar uma resposta. O Consenso de Montevideo relaciona tais demandas às metas do milênio das Organizações das Nações Unidas, que são um importante indicador para que os países busquem criar condições dignas para suas populações. No caso da saúde sexual e reprodutiva, o Consenso de Montevideo reafirma a necessidade de se pensar as questões tendo em mente as diversas desigualdades que se articulam, como as raciais e geracionais”, observa Beatriz Galli.
Quem se dedica a olhar para a América Latina se depara com uma realidade que parece ainda pouco familiarizada com a linguagem dos direitos sexuais e reprodutivos. A saúde e os direitos reprodutivos das mulheres estão em permanente fragilidade, por razões que vão desde pressão de setores conservadores, passando por legislações punitivas, até a precariedade da infra-estrutura e dos serviços de saúde. O aborto, permitido apenas em alguns casos e praticado comumente em condições insalubres, é a quarta causa de morte materna no Brasil. Afeta em especial mulheres pobres e negras que se vêem impossibilitadas de realizar o abortamento de maneira segura. São 56 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos, muito abaixo dos 35 óbitos definidos pelas metas do milênio.
De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde e do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), a América Latina e Caribe apresentam 81 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos. Alguns países, como Equador (110), Colômbia (92), Venezuela (92) e Nicarágua (95) detêm índices alarmantes. O Consenso de Montevideo reconhece a elevada taxa de mortalidade materna e o papel que o abortamento inseguro possui nessa dinâmica. De acordo com o texto, a criminalização da interrupção da gravidez não diminui o número de abortos.
Os índices de gravidez na adolescência também se mostram elevados. De acordo com dados do UNFPA, a América Latina e o Caribe apresentam média de 79 partos para cada mil adolescentes. Brasil (79), México (87), Colômbia (85), Bolívia (89) e Equador (100) evidenciam como a região está muito atrás de outras partes do mundo. Nos países desenvolvidos, a média é de 23 nascimentos para cada mil adolescentes. No texto final da Conferência, a educação integral em sexualidade e a implementação de programas de saúde sexual e reprodutiva com perspectiva de gênero e direitos humanos são demandados. Da mesma forma, o documento pede acesso a métodos contraceptivos modernos e seguros, respeitando o direito à confidencialidade e ao sigilo, e condições para que adolescentes e jovens possam decidir livremente e com responsabilidade sobre suas trajetórias reprodutivas.
De acordo com o pesquisador do Centro Latino-Americano e Caribenho de Demografia (CELADE/CEPAL) Jorge Rodríguez, as condições socioeconômicas favoráveis que a região tem experimentado no século XXI, a crescente sintonia dos governos com o Plano de Ação do Cairo e a consolidação de novos enfoques de direitos humanos para as políticas públicas demonstram avanços perceptíveis. No entanto, tais avanços “não conseguiram reverter a desigualdade entre os países e dentro dos países no âmbito do Plano de Ação, o que força os governos a redobrar esforços futuros para diminuir as brechas em questões como mortalidade infantil, materna, esperança de vida e fecundidade”, observa Jorge Rodríguez.
“Ainda há muito o que reduzir significativamente em relação aos indicadores. É preciso que isso seja feito com ações compatíveis com os princípios do Plano de Ação do Cairo, que sejam sustentáveis no tempo, definidas como políticas de Estado e observadas os grupos sociais onde se encontrar as lacunas”.
Para Altagracia Balcácer (Red de Mujeres Afroamericanas, Afrocaribeñas y de la Diáspora), a Conferência Regional de População e Desenvolvimento cumpriu as expectativas. “A pauta foi muito favorável à luta das mulheres. Os países tiveram posições avançadas em favor dos direitos sexuais e reprodutivos. Especialmente em relação às mulheres negras, geralmente pobres e excluídas e, por isso, com menos oportunidades de acesso a serviços de saúde de qualidade, o que gera um impacto maior nos casos de aborto inseguro”, afirma.
De acordo com a relatora Beatriz Galli, da Plataforma Dhesca Brasil, o resultado da Conferência Regional deve ser comemorado não apenas pelas demandas que apresenta no âmbito do continente, mas também pela referência que cria para as outras Conferências Regionais que ainda acontecerão na Ásia e na África. “A luta pela igualdade envolve muitas temáticas, como gênero, direitos sexuais e reprodutivos, raça, povos indígenas. São lutas que tem dimensão mundial, pois em qualquer lugar do mundo o autoritarismo e o desrespeito aos direitos humanos são realidades que afetam milhões de pessoas”, conclui Beatriz Galli.