A decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) brasileiro, no final de março, de manter a absolvição de um homem acusado de estuprar três meninas, em 2002, gerou uma onda de críticas pelo país. O argumento central do tribunal foi o de que as garotas, então com 12 anos, se prostituíam conscientemente e, portanto, não haveria violação da liberdade sexual.
No entanto, de acordo com juristas e especialistas ouvidos pelo CLAM, o tribunal desconsiderou diversos aspectos ao sustentar esta interpretação. Para a procuradora do Estado de São Paulo Luiza Eluf, o STJ cometeu um grave equívoco. “Uma criança de 12 anos não pode ser considerada dona de seu próprio destino. Ela não consegue entender o nível de exploração a que está submetida e não tem discernimento suficiente para tomar decisões”, observa a procuradora.
Um elemento constantemente apontado durante a polêmica foi o ambiente em que as meninas viviam. “São crianças pobres, em situação de vulnerabilidade social, expostas a inúmeras carências, e que são muitas vezes colocadas em condição de exploração sexual pela própria família. O STJ não considerou o fato de que, na pobreza, estas meninas estavam sujeitas a todo tipo de perigo. Este dado não poderia ter sido ignorado pela decisão. É fundamental que o contexto seja levando em consideração”, critica Luiza Eluf.
A decisão do Superior Tribunal de Justiça, ratificando decisão anterior do Tribunal de Justiça de São Paulo, se deu às vésperas da 4ª Conferência de Estados-Partes da Comissão Interamericana de Mulheres da Organização dos Estados Americanos (OEA), que ocorre esta semana, em Washington (EUA). No evento, a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, pediu que o fim da impunidade nos casos de violência de gênero seja uma forma de legitimar os direitos das mulheres. A ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, já tinha criticado duramente a decisão do STJ, argumentando que os direitos das crianças e dos adolescentes não poderiam ser relativizados.
A medida do STJ foi também alvo de duras críticas do Escritório Regional para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (CNUDH), que considerou deplorável a decisão sob o argumento de que esta utiliza a vida sexual de crianças para lhes retirar direitos.
Para a Márcia Acioli, especialista em violência contra crianças e adolescentes do Laboratório de Estudos da Criança da USP e assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), a decisão do STJ é absurda. “É uma iniciativa que vai na contramão da legislação brasileira. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário asseguram a segurança dos jovens brasileiros. O STJ demonstra que não dialoga com a sociedade e com a legislação nacional”, critica Márcia Acioli.
De acordo com a ministra relatora do caso no STJ, Maria Thereza de Assis Moura, não se pode considerar crime o que não viola o bem tutelado – a liberdade sexual das meninas. De acordo com a procuradora Luiza Eluf, é uma sentença que inverte o sistema de culpa. “Neste caso, jogou-se sobre as meninas a responsabilidade pela violência sofrida. Não se pode atribuir liberdade sexual a meninas que estão sob condição de exploração, pobreza e vulnerabilidade social. O homem é o responsável pelo crime, pois ele sabe que aquelas crianças estão em situação de precariedade e se compraz de sua superioridade momentânea. Ele é um explorador de crianças indefesas. A medida do STJ é uma afronta à lei e ao bom senso”, afirma Luiza Eluf, lembrando que desde 2009 o Código Penal define como “estupro de vulnerável” manter relações sexuais com menores de 14 anos.
Márcia Acioli, do Inesc, critica a suposição do STJ em justificar a violência sofrida pelas meninas. “A violência em si não precisa de precedência para ser violência. O fato de essas meninas estarem sendo exploradas não pode servir como desculpa para violação. São meninas que devem ter sua dignidade preservada. E, neste caso, vemos que a dignidade delas foi violada em dois momentos: no estupro em si e na decisão do STJ. Elas foram duplamente penalizadas”, critica a assessora do Inesc.
De acordo com Márcia Acioli, há uma lógica falocêntrica e machista na absolvição concedida pelo STJ. “Justificar a violência contra essas meninas é como apontar a roupa de uma mulher como causa para um estupro. Ora, é uma lógica que desqualifica a mulher, a coloca em uma posição subalterna, de inferioridade, como se a dignidade e a integridade dela fosse negociável. Uma mulher, jovem ou adulta, jamais pode ser acusada de um crime do qual ela é vítima. Isto é um traço do machismo em nossa sociedade, que infelizmente parece que contribuiu para a construção da decisão do STJ”, argumenta Márcia Acioli.
O Ministério Público Federal entrou com recurso contra a decisão do STJ, mas ainda não houve uma definição sobre o caso. Para Márcia Acioli, é extremamente importante que haja revogação da medida. “Uma criança não pode ser considerada prostituta. Se ela está no mercado de sexo, é exploração. Isso só ocorre porque ela não tem proteção em casa ou porque o Estado não lhe dá segurança garantida por lei. O STJ abre um precedente muito perigoso de que a violência sexual é admissível. Avançamos muito nas últimas décadas com o Brasil construindo legislação, elaborando políticas públicas e mobilizando os movimentos sociais para garantir os direitos da juventude. Este protagonismo dos direitos sexuais não pode ser manchado pela decisão do STJ”, conclui Márcia Acioli.
Leia aqui manifesto da Rede Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Reprodutivos