O Museu da República foi o cenário escolhido para o lançamento dos livros Valores Religiosos e Legislação no Brasil: a tramitação de projetos de Lei sobre temas morais controversos, organizado por Luiz Fernando Dias Duarte, Edlaine de Campos Gomes, Rachel Aisengart Menezes e Marcelo Natividade, e Dinâmicas do Fenômeno Religioso na Sociedade Brasileira, organizado por Edlaine de Campos Gomes
O professor Luiz Fernando Dias Duarte (PPGAS/MN/UFRJ) abriu a apresentação explicando que o marco de realização de ambos os livros centra-se no espaço que a religião ocupa na constituição da sociedade moderna brasileira. A religião tem sido associada à articulação de um ethos privado, ocupando a esfera da intimidade e a construção de valores relativos às noções de família, sexualidade e reprodução. No entanto, segundo ele, a religião tem começado a ganhar força na esfera pública, articulando discursos políticos referentes aos direitos sexuais e reprodutivos. Deste modo, a relação entre Estado e religião se coloca no debate sobre os valores morais e as noções de sujeito presentes na contenda pelo direito ao aborto, à união civil de pessoas do mesmo sexo e à utilização de embriões para a extração de células tronco.
A pesquisadora Naara Luna, doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ), apresentou parte da sua pesquisa sobre embriões e aborto no debate público. A antropóloga trouxe uma reflexão sobre alguns eventos em que as personagens do cenário reprodutivo – os embriões, os fetos e as mulheres grávidas – estão presentes. A pesquisa foi baseada nos discursos da imprensa sobre estas temáticas, particularmente em quatro eventos particulares. O primeiro refere-se à liminar aberta no ano 2004 que autorizava a antecipação do parto de fetos anencéfalos sem necessidade de processo judicial.
O segundo evento se refere à polêmica nos debates legislativos em torno do estabelecimento da Lei de Biossegurança, especificamente o artigo 5°, que autorizava o uso dos embriões para a extração de células-tronco. Em 2005, o Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles, entrou com uma ação de inconstitucionalidade contra o artigo, aduzindo que permitir o uso desses embriões seria contrariar os valores constitucionais da vida e da dignidade humana. O processo aceito no Supremo Tribunal de Justiça (STF) gerou uma audiência pública de esclarecimento com cientistas favoráveis à constitucionalidade da lei, e outros contrários a ela, indicados pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O uso dos embriões acabaria sendo aprovado em maio de 2008.
Um terceiro fato analisado foi a Campanha da Fraternidade do ano de 2008, cujo lema – “Escolhe, pois, a vida” – foi, segundo a pesquisadora, um modo de a Igreja Católica se posicionar contra a ameaça do uso de embriões para a extração de células-tronco e de fazer frente ao esforço de recolocar o aborto como problema de saúde pública – o que, temiam os religiosos, permitiria alterar a restritiva lei vigente.
O quarto tema foi a Argüição do Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54), que propõe incluir a antecipação do parto de fetos anencéfalos ente os permissivos do aborto legal e espera julgamento pelo Supremo.
A discussão gerada em torno desses casos permitiu trazer à tona certas linhas de valores no tocante aos modelos de sujeito presentes nos argumentos a favor ou contra essas temáticas. “Esta insistência no valor de vida desses embriões e fetos coloca em oposição os supostos interesses deles com os da sociedade mais ampla: os embriões são vida? os fetos são pessoas? eles têm direitos?, são questões permanentes nestes debates onde a Igreja Católica consegue penetrar em vários espaços do Estado para instalar sua posição como a dominante”, explicou a pesquisadora.
A apresentação “Homofobias, religião e diversidade sexual: mudanças e permanências”, proferida pelo antropólogo Marcelo Natividade, doutor em Antropologia Social pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), iniciou-se com uma provocação: o que a religião pode ter a ver com homofobia? Em que contexto é possível pensar um comportamento, crença ou atitude como portadoras de homofobia? O que entendemos por homofobia?
As reflexões vertidas na apresentação foram uma síntese das discussões acontecidas dentro do grupo de estudos sobre diversidade sexual e religião no núcleo de pesquisa “Sujeito, interação e mudança” coordenado pelo professor Luiz Fernando Diaz Duarte, e da pesquisa desenvolvida pelo autor desde 2001 sobre homens gays, integrantes de igrejas pentecostais que vivem dilemas identitários relacionados à percepção de si como gays, ora rejeitando as interpretações oferecidas pelas cosmologias religiosas, ora aderindo a estas. Segundo ele, estas igrejas apareciam no resultado da pesquisa, como ‘ambientes sociais adversos às expressões da sexualidade que fossem divergentes a norma da heterosexualidade’.
Posteriormente, o autor abriu o leque para trabalhar com as chamadas “igrejas inclusivas” ou “igrejas gays” que, diferentemente das anteriores, propõem uma releitura dos textos bíblicos ensinando que Deus aceitou aos homossexuais como eles são, ou seja, uma pedagogia da aceitação tendente a criar uma imagem inclusiva do homem gay evangélico.
No projeto de pesquisa desenvolvido em 2006 e 2007 no núcleo “Sujeito, interação e mudança”, Natividade aprofundou estas questões, desta vez na interseção entre religião, homofobia e cultura. O interesse político deste trabalho, desenvolvido através de um edital do Ministério da Saúde, alimentou a agenda de pesquisas. O escopo da pesquisa se colocou na reflexão sobre os possíveis impactos de certos discursos e práticas sociais para a reprodução de visões negativas de comportamentos e identidades dissidentes da heterossexualidade.
“Uma reflexão sobre a homofobia se conecta ao tema da mudança cultural, das definições sociais do religioso, da sexualidade e da violência na colocação de constrangimentos sociais que nem sempre são tão explícitos, o que nos levaria a pensar em homofobias, quer dizer, formas de rejeição mais viscerais e outras mais sutis ou cordiais”, explicou o pesquisador. Neste contexto, segundo Natividade, a homofobia pode ser definida como um conjunto de práticas sociais e constrangimentos sociológicos que se manifestam de formas plurais em nossa sociedade: violências simbólicas, agressões físicas e verbais, silêncios, recusas de direitos etc.
“As mudanças culturais e políticas fazem com que esse grupo de pessoas, cujos comportamentos são objeto de controle por divergir da norma da heterossexualidade, busque reconhecimento e legitimidade, reivindicando direitos e cidadania”, disse ele.
Na análise do antropólogo, a equação homossexualidade-sexo impuro-contaminação-castigo divino-morte, presente nos discursos de algumas igrejas explicita a manutenção de certos estereótipos e a definição de algumas sexualidades como legítimas e outras como ilegítimas.
Finalmente, Veriano Terto trouxe alguns resultados da pesquisa sobre religião e Aids que a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), a qual coordena, desenvolveu junto com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de Rio Grande do Sul (UFRGS). Para Terto, a pesquisa permitiu uma intersetorialidade interessante entre ONGs e instituições acadêmicas e religiosas.
O objetivo da pesquisa foi entender, identificar e analisar algumas respostas da AIDS no Brasil a partir de três matrizes religiosas – católica, protestante e afro-brasileira – e ver o papel da religião na criação de discursos sobre a Aids e na mobilização da sociedade civil. O pesquisador explicou que, assim como existe o lado repressivo, principalmente nas religiões protestantes, também é possível observar um lado colocado na ênfase de tentar mudar o preconceito perante as pessoas com HIV/Aids. “Boa parte das casas de apoio iniciaram-se a partir de uma matriz religiosa, principalmente a católica. Assim, a pesquisa procura retratar os modos em que se estruturaram essas ambigüidades entre ser um elemento de atraso e retrocesso na constituição de um discurso mais solidário para a AIDS, principalmente no campo da prevenção, e a promoção de um discurso solidário, principalmente no campo da assistência”, observou.
Outro tema explorado foi a relação entre religião e Estado para entender as lógicas de financiamento que se construíram a partir da cooperação entre igrejas e Estado, o que, segundo Veriano, ajuda a pensar temas como a laicidade e a concepção de sociedade civil e a noção de cooperação que permeiam essa relação.