Desde o dia 17 de outubro o Uruguai passou a integrar, juntamente com Cuba, Porto Rico e Guiana, um seleto grupo de países latino-americanos que descriminalizaram o aborto sob todas as circunstâncias. Na região, soma-se a esses países o Distrito Federal mexicano, um oásis dentro de um país que fecha cada dia mais as portas aos direitos sexuais e reprodutivos. A lei de Interrupção Voluntária da Gravidez uruguaia foi aprovada pelo Senado com 17 votos (em um total de 31), 16 legisladores do governante Frente Ampla e um do opositor Partido Nacional.
O projeto havia sido aprovado em 25 de setembro pela Câmara de Deputados com 50 votos a favor e 49 contra. O presidente Mujica, que havia anunciado que não vetaría a proposta, acabou por promulgá-la na segunda-feira, 22 de outubro. “É um grande avanço porque no marco legal vigente se consagra o direito das mulheres e as obrigações das instituições médicas”, assinalou à imprensa a senadora socialista Mónica Xavier, impulsora do projeto de legalização do aborto que deu início ao debate em 2008, dando lugar à lei 18.426 de Saúde Sexual e Reprodutiva, cujo capítulo sobre aborto foi vetado pelo então presidente Tabaré Vázquez.
Pelo lado opositor, o senador nacionalista Jorge Larrañaga anunciou que implementaria ações para anular a lei. Além disso, alguns setores do Partido Nacional iniciaram campanha de coletas de assinaturas para convocar um plebiscito derrogatório.
O que permite a lei
A lei contempla a possibilidade de realizar o aborto dentro do prazo das 12 semanas de gestação. A mulher deverá consultar-se com um ginecologista em instituição do Sistema Nacional Integrado de Saúde, para deixar o médico ciente de sua intenção. “As circunstâncias derivadas das condições em que se deu a concepção, situações econômica, sociais ou familiares ou etárias que, a seu critério, lhe impedem de levar a gravidez a diante”, determina o artigo 2° da lei. Quando houver risco para a saúde e à vida da mãe não haverá limites nas semanas de gestação, segundo o artigo 6°. Para os casos de estupro, o prazo será de 14 semanas, além do requisito de uma denúncia judicial, que não implica um veredicto da Justiça, apenas a notificação da dita denúncia.
O artigo 7° da lei prevê que menores de idade têm direito à prática, desde que acompanhadas por um responsável, mesmo que esta pessoa seja também menor de idade. Não é necessária aprovação do acompanhante. Importante destacar também que somente as cidadãs uruguaias ou aquelas que tenham ao menos um ano de residência no país poderão realizar o procedimento.
A objeção de consciência não poderá ser institucional. Ou seja, cada instituição hospitalar deverá garantir ao menos uma equipe que realize o aborto. “Os profissionais objetores de consciência deverão informar sua postura às instituições onde trabalham. Se não o fizerem, se entenderá que eles não fazem objeção de realizar o serviço”, explicou ao CLAM a antropóloga Susana Rostagnol.
Os pontos frios
No entanto, para conseguir a aprovação na Câmara de Deputados em setembro, o projeto teve que ceder em dois pontos importantes. Por um lado, teve que mudar “legalização” por “despenalização”, uma vez que, tal como está contemplado em seu artigo 2°, “a interrupção voluntária da gravidez não será penalizada e em consequência não serão aplicados os artigos 325 e 325 do Código Penal, para que a mulher cumpra com os requisitos que se estabelecem nos artigos seguintes e se realize durante as primeiras doze semanas de gravidez”. Deste modo, o delito continua presente na legislação uruguaia. Por outro lado, se incorporou a implementação de uma equipe interdisciplinar formada por “ao menos três profissionais, dos quais um deverá ser médico ginecologista, outro deverá ter especialização na área da sáude psíquica e o restante na área social”. A lei estabelece ainda em seu artigo 3° que a equipe interdisciplinar “deverá constituir-se em um ámbito de apoio psicológico e social à mulher, para contribuir a superar as causas que podem induzi-la à interrupção da gravidez e garantir que disponha da informação para a tomada de uma decisão consciente e responsável”. Na visão dos defensores do direito ao aborto naquele país, a comissão tutela as mulheres, atentando contra o reconhecimento de decidir sobre seus própios corpos. Em entrevista ao Indymedia, Lilián Abracinskas, da organização Mujer y Salud en Uruguay (MYSU) argumentou que “não se pode falar das benesses da maternidade e dos riscos do aborto, uma vez que não há evidência científica que dê conta disto. O aborto é perigoso somente se feito em más condições. Se feito em condições adequadas, o aborto é menos perigoso do que continuar com uma gravidez, por exemplo”, destacou.
O mesmo pode-se dizer, explica Susana Rostagnol, em relação à medicalização a que a lei obriga. “O fato de ter que se submeter a uma junta supõe ter que realizar o procedimento em uma instituição hospitalar. Não se poderá, por exemplo, usar misoprostol e fazê-lo em casa”. Além disso, a mulher deverá esperar cinco dias para ratificar ou desistir de sua decisão. Em um comunicado emitido logo após a sanção dos deputados, MYSU declarou que: “As condições impostas pelo projeto respondem mais a um paradigma de tutela profissional do que a um reconhecimento das mulheres como sujeitos de direitos”.
“Para definir estas lacunas será necessário pressionar a regulamentação da lei”, afirma Susana Rostagnol.
“Outro grande trabalho que temos pela frente é informar às mulheres que, assim que tiverem um atraso menstrual, consultem imediatamente um médico, porque os prazos são muito curtos. Com um atraso de dez semanas, não haverá tempo para recorrer a um aborto nas condições que estabelece a lei”, explica Abracinskas.