A CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação, Ação – realizou, nos dias 13 e 14 de junho, o Encontro Internacional “Violência contra as mulheres – desafios e respostas: o papel do Estado e da Sociedade Civil”, no Rio de Janeiro, com o apoio da Fundação Ford. No encontro, onde se objetivava compartilhar a experiência brasileira no enfrentamento à violência doméstica com outros países, discutiu-se o quanto a questão é atravessada por fatores culturais, políticos e econômicos não somente no Brasil e na América Latina, mas em todas as outras regiões do mundo.
A experiência brasileira foi analisada mais profundamente, oito meses após a aprovação da Lei Maria da Penha (lei 11340), primeira legislação no país a contemplar a questão da violência contra a mulher, e duas décadas depois da criação das Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (DEAM). Embora os avanços no Legislativo tenham sido realçados pelas representantes de diversas organizações, presentes ao evento, a dificuldade de interlocução com o poder Judiciário, em razão de seu conservadorismo, bem como o papel do Estado também foram questões debatidas.
“A mudança paradigmática, trazida pelo movimento de mulheres, coloca que o Estado tem a obrigação de intervir na violência doméstica, de acordo com a Constituição Brasileira de 1988. Isso nos impõe um questionamento: o quanto o Estado pode intervir na área privada? É preciso redefinir o conceito de esfera privada e esfera pública. Definir qual o dever do Estado em intervir e qual o limite dessa intervenção é um processo gradual”, disse a socióloga Jacqueline Pitanguy, diretora da CEPIA e coordenadora da mesa de abertura.
“O movimento de mulheres privilegia o diálogo com o Estado, enquanto deveria abrir mais esse diálogo com a sociedade civil, a chamada ‘maioria silenciosa’, para que esta entre e faça parte deste debate”, observou a advogada Leila Linhares Barsted, também diretora da CEPIA.
Segundo Aparecida Gonçalves, representante da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM/Governo Federal) no Encontro, “a estrutura do privado ainda é muito forte. No Brasil, a idéia sempre foi de que a questão da violência doméstica tem que ser resolvida no âmbito familiar, em conciliação entre vítima e agressor, e de que este é um problema entre marido e mulher”, salientou.
Para Vitor Abramovich, presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, é necessário estabelecer as fronteiras entre esfera privada e pública. “O debate em torno da violência contra a mulher implica em uma mudança na forma de pensar a violência ocorrida dentro de casa – vista como um espaço de não ingerência de instituições estatais – e faz com que o Estado perceba que tem o dever de reparação em relação à vida privada. O artigo 7º da Convenção de Belém do Pará (1994) estabelece que o Estado deve ser legalmente responsável por casos de violência contra a mulher quando podia ter prevenido e formado elementos que evitassem que isto ocorresse. A partir desse princípio, estabelecemos questões importantes, entre elas a necessidade de que o Estado produza informações e monitore a situação de violência doméstica e disponibilize recursos”, afirmou.
Impunidade latina
Outro aspecto apontado por Abramovich foi a questão da impunidade e do preconceito. “Na maioria dos países a violência é tipificada como crime, mas existe um número altíssimo de casos impunes. O número de relatos que chega à polícia é ínfimo. No Chile são apenas 8%, no Equador 3% e na Guatemala 0, 33%. Existe um padrão de impunidade em todo o continente que reforça um alto nível de tolerância social em relação à violência contra as mulheres. Além disso, acaba-se gerando uma forte pressão sobre a vítima quando esta denuncia a violência sofrida. Em Honduras, durante um caso penal de violência sexual, a vítima teve que repetir seis vezes o relato da experiência do estupro à s autoridades. Em outros casos, a mulher é vítima da velha história de que ela é que estava em um lugar onde uma mulher honesta não deveria estar”, exemplificou.
“Elementos morais justificam o não olhar do Estado em relação à questão da violência doméstica. Acostumou-se a dizer: ‘Ela morreu porque mereceu’”, analisou Aparecida Gonçalves.
Surgidas no Brasil na década de 80, as Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (DEAM) foram criadas com a intenção de que seriam espaços onde as mulheres se sentiriam à vontade para denunciar os casos de violência sofrida. “Esperava-se também que servissem de modelo de como a polícia deveria atuar, mas a corporação policial ainda tem uma postura autoritária herdada dos tempos repressores da ditadura”, ressaltou Leila Linhares.
Para ela, o conjunto de iniciativas existentes – delegacias e juizados especiais e lei Maria da Penha – ainda não está suficientemente articulado. “Por isso, não tem o impacto que deveria ter. Ainda estamos no nível de serviços isolados”.
Na opinião de Cecília Soares, presidente do Conselho dos Direitos da Mulher do Estado do Rio de Janeiro (CEDIM), a criação das DEAM foi importante por representar hoje o principal instrumento de denúncia de violência. “A criação das delegacias especiais foi um passo fundamental, mas ainda temos que pensar em outras formas de a mulher ser bem atendida”, disse.
Aparecida Gonçalves concordou: “Não cabe somente às delegacias a responsabilidade pela violência contra a mulher. Muitas vezes uma mulher vítima de violência não precisa somente da polícia, mas também de aconselhamento e serviços de saúde. Mas tudo acaba sendo encaminhado para a delegacia. Temos que avançar na implementação de outros serviços”, observou a representante da SPM.
Presente ao Encontro, a feminista indiana Manisha Gupte lembrou que, na Índia, a instalação de delegacias especiais dividiu a opinião do movimento de mulheres. “Umas viram a possibilidade de instalação dessas unidades como um modo de marginalização, afirmando que os casos de agressões à mulher deveriam ser tratados em todas as delegacias”.
Segundo Manisha, naquele país, traços religiosos marcam a cultura e ainda prevalecem na definição do papel da mulher e no julgamento de um crime de violência doméstica. “Ainda existem coisas do tipo: ‘se você é uma mulher honesta coloque a mão no óleo quente e nada vai te acontecer”, contou a feminista.
Na Rússia, relatou Marina Pisklakova- Parker, não existem mecanismos para lidar com a violência doméstica. A ênfase está no treinamento de policiais. “Nosso maior desafio no momento é mudar a legislação”, salientou.
Para a advogada norte-americana Kimberle Williams Crenshaw, professora da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, e professora visitante da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC), “o encarceramento dos homens não é a solução”. Segundo ela, nos Estados Unidos, ao atender uma denúncia de violência doméstica, o protocolo é enviar policias femininas ao local. Os agressores são presos e passam por um período de reabilitação. “Mas nada acontece depois da reabilitação. Precisamos de mais recursos para aplicar na prevenção à violência contra a mulher”, afirmou.
Segundo Leila Linhares, a prevenção não deve depender somente das ações do Estado. “Ela implica também em mudanças culturais profundas, em um envolvimento de toda a sociedade para superar padrões de autoritarismo e de machismo. O que tem que ser debatido é a idéia de que a violência doméstica é de menor potencial ofensivo”, concluiu.
Outra questão discutida foi a circulação de armas de fogo no Brasil: em Pernambuco, estado onde são registrados os maiores índices de violência doméstica, 75% dos crimes são cometidos com armas de fogo, e cerca de 300 mulheres são assassinadas anualmente.
“Os avanços em leis protetivas nem sempre se traduzem em melhoria de acesso das mulheres ao exercício de seus direitos”, finalizou Vitor Abramovich.
O Encontro terminou com o lançamento do livro “Violence against women in the international context: challenges and responses”.