CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Zika e desigualdade

“A epidemia de vírus zika associada a más-formações e complicações neurológicas fetais afeta desproporcionalmente as mulheres. (…) A desigualdade do gênero não é invenção da epidemia, mas suas marcas sociais e afetivas sobre as mulheres são agravadas por ela. Por isso é que afirmamos: não é possível enfrentar a epidemia e cuidar da saúde pública sem garantir direitos às mulheres”.

A epígrafe foi extraída do blog Vozes da Igualdade, impulsionado pelo Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero há cerca de um ano. Nele, a cada semana, são discutidos temas como aborto, racismo, homofobia, ensino religioso, pornografia de vingança e feminicídio, além de assuntos que estão na ordem do dia, como a redução da maioridade penal e o debate em torno da discussão do gênero e Educação. Além de trazer importantes reflexões sobre estas temáticas, se trata de uma útil ferramenta por veicular informações cuidadosamente selecionadas, discutidas em uma linguagem acessível para um público amplo.

Nesta entrevista ao blog, Jacqueline Loureiro, psicóloga em ala reservada ao atendimento de mulheres e crianças com síndrome neurológica associada ao zika no Hospital Municipal de Campina Grande
(PB), aborda a problemática da relação zika e gênero.

Vozes da Igualdade entrevista Jacqueline Loureiro*

Ouvimos muitas histórias de mulheres que adquiriram o vírus zika durante a gestação e foram abandonadas pelos maridos e companheiros quando o filho foi diagnosticado com síndrome fetal associada ao zika. No Hospital Dom Pedro I, você tem encontrado muitos casos assim?

Existem casos de mulheres que de fato foram abandonadas quando souberam do diagnóstico e outras que foram abandonadas no puerpério, pouco tempo depois que tiveram os bebês. Mas é interessante que muitas das mulheres que eu tenho acompanhado não se veem como abandonadas, por não ter havido um abandono oficial. Por exemplo, o companheiro não diz que está saindo de casa ou que a está deixando, mas ele não dá suporte emocional nem financeiro a elas. Então, de todas as mulheres que eu atendo, apenas 10% têm companheiros que prestam algum suporte. Alguns culpam as mulheres pelo fato de elas terem adquirido o zika. Há também aqueles que, devido às mudanças na vida e na rotina delas — que vão ao hospital duas, três vezes na semana —, reclamam que não têm mais mulher dentro de casa, e que chegam em casa e não têm jantar. As mulheres estão à frente do cuidado em todos os sentidos: elas que estão ali toda semana indo duas, três vezes [ao hospital] e sem condições socioeconômicas favoráveis. A maioria vive do Bolsa Família.

Além do pouco amparo pelo Estado, muitas mulheres são ainda as únicas cuidadoras das crianças. Como elas têm enfrentado essa situação?

Todas pararam de trabalhar. Muitas faziam faxina, tinham trabalhos informais, mas hoje nenhuma delas tem condições de trabalhar, porque elas têm que ir ao hospital, seja para a fisioterapia, para a psicologia ou para outras consultas médicas. Então mudou [a rotina] completamente, elas estão em adaptação. Algumas têm suporte de outros parentes da família, seja a mãe, irmão, e muitas contam com o suporte que é prestado no hospital. Nós temos três grupos formados para trabalhar com questões terapêuticas, emocionais, e questões informativas. Nesse primeiro momento, nós [do Hospital Dom Pedro I] prestamos o apoio emocional, mas elas precisam de recursos materiais, porque todas têm condições

socioeconômicas baixas, umas mais baixas que outras. Há campanhas na cidade, de entidades, grupos de mulheres, grupos de gestantes que estão fazendo doações de leite, fraldas, roupas, brinquedos lúdicos, porque [as crianças] precisam de estimulação precoce. Nenhuma das mulheres tem condições de comprar brinquedos para a faixa etária que possam fazer uma estimulação. Estou atendendo agora 29 mulheres, 27 já com as crianças e 2 gestantes. É um número importante de crianças que vão precisar de suporte por muito tempo ainda.

Em meio às incertezas científicas da epidemia do vírus zika, o hospital Dom Pedro I tem se destacado pelo serviço prestado às mulheres e crianças. Quais são as principais dificuldades enfrentadas pelos profissionais?

É difícil para nós ainda trabalharmos algumas informações, porque essa associação zika e microcefalia ainda não conhecemos bem, estamos num processo de estudo. Na literatura, conhecemos a microcefalia, porém essa nova doença que está surgindo vai um pouco além da microcefalia, então é complicado para nós profissionais trabalharmos algumas informações com essas mulheres. E as mulheres percebem o que está acontecendo de forma idealizada, romântica. Por exemplo, elas sabem que os filhos têm um comprometimento cognitivo e psicomotor importante, mas escutamos comentários como “não vejo a hora dessas crianças estarem aqui correndo de um lado para o outro do corredor”. É preciso um trabalho enorme para que essas crianças consigam de fato se desenvolver de forma adequada. Nesse primeiro momento, está sendo oferecido esse suporte até os dois anos de idade, que é um momento delicado da primeira infância. Mas, posteriormente, é algo que também nos perguntamos: depois desse período, como será? Eu acredito que outras políticas devem ser pensadas e colocadas para atender essa demanda.

 

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