Devir Puta – Políticas da prostituição de rua na experiência de quatro mulheres militantes (CLAM/EdUerj)
De José Miguel Nieto Olivar
Resenha escrita por Thaddeus Gregory Blanchette*
A prostituição está entre as formas de trabalho mais estigmatizadas do mundo, e muitas vezes a literatura referente a ela objetifica as prostitutas tratando-as como passivas e absolutamente destituídas de agência. Tal situação é irônica, pois a crítica mais comum de parte significante desses trabalhos – se não da absoluta maioria – é que a prostituição transforma suas praticantes em objetos dominados. Mas nenhum ser humano é mais dominado ou objetificado que aquele que não pode falar por si só.
Neste sentido, o livro de José Miguel Nieto Olivar, “Devir Puta – Políticas da prostituição de rua na experiência de quatro mulheres militantes”, é extremamente valioso, por sua honestidade e pelo cuidado e o respeito com que o autor retrata suas informantes prostitutas. A obra é um raro exemplo do pensamento antropológico inteligente e claro aplicado à questão da prostituição, e conta com um interessante material fotográfico mostrando suas protagonistas em contexto familiar.
José Miguel deixa suas informantes falar, extensivamente, antes de se empenhar na analise antropológica destas falas. É este o ponto forte de seu livro: a construção de suas quatro protagonistas como pessoas reais, complexas – nem vítimas e nem vitimizadoras. O autor as apresenta como seres e corpos sujeitos a violências e estigmas reais, escapando também da fantasia sedutora de retratar a prostituta como o outro abjeto.
Outra contribuição extremamente válida da obra é a desmistificação das linhas entre prostituta, esposa, namorada e mulher; e das linhas entre marido, cafetão, gigolô e homem. O ponto mais importante é sua contribuição ao debate acerca de prostituição e tráfico de mulheres no mundo, sendo que o autor demonstra que a divisão entre a sexualidade/afetividade normativa da família nuclear monogâmica é em última instância a raiz sob qual a relação prostituta/gigolô/cliente está construída.
Mas a verdadeira jóia do livro é a maneira que o autor traça a linha de desenvolvimento de redes e personagens na zona de prostituição de Porto Alegre, desde os últimos anos da ditadura até os dias de hoje. José Miguel retrata assim o florescimento de leis que impossibilitam o trabalho sexual, mas que se apresentam às prostitutas como medidas liberadoras. Também retrata como a bota da polícia ainda está pronta para “impor a ordem”, nos casos em que as prostitutas “saem da linha” – a assim chamada “violência sanitária”.
Desta forma, obra de José Miguel Nieto Olivar retrata, em miniatura, o processo de democratização no Brasil durante os últimos 30 anos, onde organizações populares “de base” estão sendo cada vez mais substituídas por organizações “oficias”. Particularmente valioso, neste sentido, é como o autor demonstra, na “guerra” do Estado contra a prostituição, o poder nu e cru do cassetete e da bala sendo substituído pelo não menos devastador biopoder de camisinhas e migalhas financeiras, dadas àquelas prostitutas que aprendem a falar o que o Estado e seus agentes querem ouvir.
* Professor de Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro.