Ao finalizar sua apresentação durante seminário na Universidade Federal de Santa Catarina em 2007, a transexual Bárbara Graner questionou: ”Não entendo porque só uma cirurgia genital permita que uma mulher seja chamada de mulher. Somente uma vagina pode atestar que você é mulher? A questão da feminilidade e de nome estão somente ligados ao órgão genital?” Dito isto, levantou-se de sua cadeira e, batendo na mesa repetidas vezes, falou em alto e bom tom: “Sou mulher! Me sinto uma mulher, logo sou uma mulher!” Embora saibamos que, ao ser oficializado em 1975 pela ONU, o Dia Internacional da Mulher referia-se inicialmente somente às mulheres assignadas biologicamente como tal – e que estas, em 2009, ainda sofrem com questões como a criminalização do aborto e a violência – cabe aqui, face à afirmação de Graner, refletir sobre “o que é ser mulher”, uma vez que a dicotomia entre sexo e gênero e a idéia de que gênero seja decorrência do sexo biológico vêm sendo objetos de contínua reflexão pelos estudos de gênero e feministas.
"Ser mulher é uma construção social e cultural”, explica a socióloga chilena Teresa Valdez, do Centro de Estudios para el Desarrollo de la Mujer (CEDEM). “Historicamente, as culturas têm construído sua idéia de ser mulher levando em conta o corpo sexuado, isto é, a um sexo tem sido designado um gênero. Ser mulher não é somente a construção social e cultural, mas sim uma construção fortemente subjetiva. Ser reconhecida como mulher é também uma necessidade e é aí onde se produz a tensão com a própria subjetividade, em que posso sentir-me mulher, embora não me reconheçam como tal. Neste contexto, temos que entender a rebeldia e o desabafo de Bárbara Graner. O que vale mais: como ela se sente ou o que o contexto social considera atributos necessários para reconhecê-la como uma mulher?”, questiona.
Neste ponto, a opinião de Valdez converge com a da ativista travesti colombiana Diana Navarro Sanjuán, diretora da Corporación Opción, para quem o pertencimento ao gênero feminino está “mais além dos órgãos genitais e sexuais femininos, uma vez que o gênero não tem a ver com nossa fisiologia. Independentemente de um caráter fisiológico genital, nós, pessoas de sexo masculino com uma construção identitária feminina, somos mulheres”, afirma Diana.
A partir da afirmação de Simone de Beauvoir de que “não se nasce mulher”, o papel do substrato biológico e social na constituição das noções de homem e mulher tem marcado as discussões teóricas e políticas em relação ao que significa ser homem e ser mulher. “Do ponto de vista biológico, a mulher é um ser humano com cromossomas XX; entretanto, do ponto de vista cultural, não há somente uma forma de ser mulher”, comenta a antropóloga Marta Lamas, diretora da revista mexicana Debate Feminista. “Ser uma mulher em um país muçulmano não é o mesmo que ser uma mulher em um país nórdico ou no México. Não existe A mulher, mas sim muitas formas de ser mulher, as quais estão cruzadas por questões geracionais, de classe social, de localização geográfica, de crenças religiosas ou ideológicas”, pontua a feminista.
Caminham na mesma direção a antropóloga brasileira Anna Paula Vencato – para quem não é possível dar uma definição objetiva do que é ser mulher, por não existir uma espécie de "essência compartilhada" por todas as mulheres e que vá definir uma "mulheridade" – e a ativista argentina Alejandra Sardá, integrante do grupo Mulabi (Espacio latinoamericano de sexualidades y derechos), que considera que ser mulher seja uma categoria identitária e uma convenção social que “oferece a possibilidade de mudar seu significado à medida que as circunstâncias sociais exijam”.
Professora na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Vencato atualmente realiza a pesquisa "Existimos pelo prazer de ser mulher: corpo, gênero e sexualidade em homens que praticam crossdressing”, para sua tese de doutorado, a ser defendida em breve pelo PPGSA-IFCS-UFRJ. A pesquisa, de base etnográfica, foi realizada basicamente em eventos do Brazilian Crossdresser Club (BCC) e também na internet. “Crossdressers não são mulheres e não se vêem como tal. De forma rápida, poder-se-ia dizer que são homens que ‘se vestem de mulher’, ou que efetivam o ‘desejo de se vestir com roupas e acessórios femininos’, embora o crossdressing seja algo um tanto mais complexo que isso. E, mesmo assim, a noção de feminino que usam para se montar é bastante peculiar. É uma ‘montagem transitória’, realizada em alguns momentos específicos, que envolve graus variados de intervenção corporal, dependendo do que se pretende em termos de resultado final daquela produção. De modo geral, as crossdressers se inspiram e buscam realizar em suas montagens coisas que observam nas mulheres e que admiram ou em coisas que elas vêem nas mulheres e acham bonito ou interessante”, explica a pesquisadora.
Nesta perspectiva, em vez de se referir a uma essência comum, pensar a noção de mulher supõe conceber uma categoria permeável a múltiplos sentidos que, nas palavras da antropóloga brasileira Regina Facchini (Pagu/Unicamp), esteja “sempre aberta a incluir todas aquelas diferenças que demandam o reconhecimento das pessoas enquanto mulheres”. Facchini é autora da tese de doutorado “Entre umas e outras: mulheres, homossexualidades e diferenças na cidade de São Paulo”, defendida na Unicamp em 2008, para a qual pesquisou mulheres que têm relações afetivo-sexuais com outras mulheres, com idades entre 18 e 65 anos e diferentes inserções de classe e étnico-raciais. Além dos bares e boates lésbicos, realizou observação etnográfica em uma rede situada na periferia de São Paulo, outra formada por frequentadoras de um clube sadomasoquista e uma rede de jovens feministas que se denomina “riot girrrls” ou "minas do rock".
“A pesquisa em campo me forçou a relativizar o uso da categoria ‘mulher’. Encontrei pessoas que nasceram do sexo biológico feminino e que se consideravam ‘homem trans’ ou ‘entendidas’, buscando uma expressão de gênero mais ‘masculina’. A ‘masculinidade’ esteve mais presente especialmente entre mulheres de estratos sociais mais baixos e sofria modulações de acordo com a geração, de modo a compor masculinidades mais sisudas entre as mais velhas (que valorizam o ‘respeito’) e masculinidades mais próximas ao mundo do hip hop ou dos estilos juvenis predominantes nas periferias entre as mais jovens. vai logo depois de "hip-hop: A própria categoria mulher não consegue abranger algumas expressões de gênero, composições e recomposições de peças do caleidoscópio dos processos pelos quais essas “mulheres” diferentes se tornam sujeitos corporeizados, gente de carne e osso”, explica.
O significado do “feminino”
Do mesmo modo que falar de “mulher” supõe pensar em plural, referir-se ao feminino traz à luz as diferentes formas em que esta idéia se materializa. “A maneira em que as mulheres ou outras pessoas incorporam aspectos das feminilidades existentes está informada por certas convenções sociais que variam, considerando elementos diversos do contexto específico no qual determinada pessoa está inserida”, argumenta Anna Paula Vencato. Para ela, falar das convenções sociais que atravessam a construção dos diferentes femininos implica “entender que estas construções ocorrem de forma bastante complexa, através da incorporação de e negociação com diversos fatores, como os marcadores sociais da diferença, por exemplo, ou os graus de identificação e afastamento que uma determinada pessoa possa ter com um conjunto de costumes ou valores sociais específicos”.
O antropólogo brasileiro Jorge Leite, professor no departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), lembra que nunca houve consenso sobre o que significa ser mulher ou ser homem, mas sim “apenas momentos em que determinada visão se torna hegemônica e se naturaliza". O mesmo acontece com a noção de feminino: “São as convenções sociais que determinam o que pode ou não ser entendido como feminino em determinada época. Hoje, uma mulher ser uma torcedora entusiasmada por seu time ou mesmo jogar futebol não é mais visto como algo contrário à feminilidade. Mas há décadas passadas, aqui no Brasil, isso era, para os valores culturais da época, um sinal claro de falta de feminilidade e uma ‘masculinização’ da mulher. Ainda hoje, mulheres fisiculturistas sofrem este tipo de preconceito”.
Jorge Leite é autor da tese “Nossos corpos também mudam: sexo, gênero e a invenção das categorias ‘travesti’ e ‘transexual’ no discurso científico”, defendida em novembro de 2008, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). O campo foram as travestis e transexuais que trabalham e vivem na região central de São Paulo.
“Grosso modo, posso dizer que a construção do feminino no meio das travestis se dá através da ingestão de hormônios, implante/ aplicação de silicone e, principalmente, um intenso e constante processo de ‘encarnação’ das normas de gênero (no caso, o feminino) vigentes no período, sem abrir mão de determinados elementos associados à noção de virilidade masculina, em especial em relação às práticas sexuais. De qualquer maneira, sempre é importante lembrar que, a grande maioria das pessoas que se auto-identificam como travestis aqui no Brasil não se reconhecem como mulheres”, diz ele.
No entanto, estas desconstruções convivem com modelos hegemônicos marcados por uma ordem de gênero que constrói o feminino sobre o fato reprodutivo, isto é, sobre a maternidade e a conjugalidade heterossexual. Para Diana Navarro Sanjuán, os paradigmas sociais do “dever ser feminino” põem tanto as mulheres assim designadas ao nascer como as transgênero no lugar de ter que validar e reproduzir estereótipos. “Muitas de nós ainda copiamos modelos do que nos foi imposto como feminino: seios grandes, corpos ostentosos, cintura pequena, quadris largos, braços finos, ventres planos, unhas grandes, cabelos longos, o uso de maquiagem, roupas e acessórios que permitam identificar-nos como parte das múltiplas formas de ser mulher”.
Segundo a ativista, comportamentos submissos quase monacais que reproduzem os estereótipos negativos do “dever ser da mulher” condicionam o tipo de mulher que as mulheres trans querem ser. Por sua vez, as pesquisadoras entrevistadas coincidem sobre o lugar privilegiado da maternidade nas convenções do feminino. “Há um mito que diz que o destino de uma mulher é ser mãe e o que vai confirmar a sua feminilidade é esse fato biológico. Por outro lado, como está construída essa feminilidade, com os valores da maternidade, é um ato de abnegação em prol de ocupar-se com os filhos. Entretanto, o tema da maternidade não é um tema de biologia. Muitas mulheres, sejam transexuais ou não, optam por adotar filhos, e são boas mães”, argumenta Marta Lamas.
Na mesma linha, para Alejandra Sardá a veneração feminina da maternidade, que se complementa com a da paternidade masculina, “é um dos tabus mais resistentes, que danifica seriamente a possibilidade de pensar e implementar políticas sérias de saúde e direitos reprodutivos e também de encontrar novas formas de feminilidade. Há muito tempo, em nível mundial, movimentos críticos tem sido feitos no sentido de reformular a condição humana, a partir de um reconhecimento da diversidade sexual, de gênero, de opções em muitos sentidos. Valorizar a diversidade rompe com esses esquemas monolíticos de ser homem ou mulher”.
Nas palavras de Regina Facchini, “pensar como reconhecer a diversidade de quem se reivindica mulher talvez seja a política de solidariedade mais importante” para se conseguir que cada 8 de março seja um espaço para comemorar todas as possibilidades que supõe a palavra “mulher”.