O mundo da cultura é um universo moralmente sensível em relação a determinadas temáticas, conforme debatido na palestra “Políticas Culturais de Ação Afirmativa: minorias sexuais”, organizado pela Casa Rui Barbosa, no dia 21 de maio. No entanto, apesar dos obstáculos, tanto o poder público como ativistas têm buscado saídas para que questões do campo da sexualidade e do gênero sejam incorporadas às produções culturais e fortaleçam a perspectiva da diversidade.
Estiveram presentes no debate, cuja mesa foi mediada pelo antropólogo e coordenador do CLAM, Sérgio Carrara, o ator e ex-diretor da Funarte Sérgio Mamberti; a produtora de cinema Lucy Barreto; Roberval Duarte (Secretaria do Audiovisual/Ministério da Cultura); e o coordenador de projetos culturais da Secretaria de Cidadania e Diversidade do Ministério da Cultura (Minc), Pedro Domingues.
Sérgio Mamberti iniciou a fala citando a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, documento da Unesco do qual o Brasil é signatário, que estipula princípios como o respeito à pluralidade cultural como forma de estimular a tolerância. A Convenção estabelece, sob a perspectiva dos direitos humanos, o reconhecimento da dignidade cultural das minorias sociais. Para o ex-diretor da Funarte, o Ministério da Cultura, ao longo da gestão do ex-presidente Lula (2003-2010) e agora na gestão Dilma Rousseff, ganhou musculatura institucional. Prova disso foi promulgação da lei do Plano Nacional de Cultural, em 2010, que traça um planejamento e metas para o campo da cultura para os próximos 10 anos. “É importante que a cultura seja pensada não apenas do ponto de vista institucional, mas também na sua dimensão social. O que buscamos fazer nos últimos anos foi criar um diálogo intenso com a sociedade civil, com a classe artística, de modo que as demandas sejam melhor entendidas e encaminhadas”, afirmou Sérgio Mamberti, lembrando que o diálogo incorporou questões do campo da cidadania LGBT. “A militância das minorias sexuais é uma força importante, especialmente em um momento de obstáculos, como a dificuldade de se criminalizar a homofobia”, afirmou, fazendo alusão à pressão de setores religiosos conservadores que, no Congresso Nacional, opõem contra projetos inclusivos e promotores dos direitos LGBT.
Para Sérgio Mamberti, a expansão das paradas gays pelo Brasil, com apoio do poder público, indica uma abertura importante no processo de reconhecimento das questões LGBT. “Temos intensificado as políticas de diversidade. As culturas indígenas, popular, de idosos, de portadores de deficiência, de ciganos também têm sido fomentadas como política de Estado. Aos poucos, a sociedade vai absorvendo a discussão. A inserção de temáticas LGBT em novelas de grande audiência é um reflexo disso. No entanto, como toda ação, há sempre reação. O presidente Lula, durante a 1ª Conferência LGBT, chamou atenção para o fato de os avanços serem seguidos de tentativas de revertê-los ou contestá-los. Não é à toa que os casos de homofobia parecem crescer. Os primeiros incentivos do poder público às paradas gays, por exemplo, foram alvos de ações movidas por setores conservadores, que alegavam estímulo à homossexualidade”, observou Sérgio Mamberti.
Pedro Domingues, do Minc, destacou a importância da incorporação de temáticas culturais de minorias pelo Estado. De acordo com ele, tem havido uma conjuntura de consolidação da diversidade no imaginário social. “O Brasil tem na diversidade uma força de desenvolvimento. O reconhecimento das diferenças passa pela disputa de espaços no imaginário. Tal disputa tem sido articulada tendo como princípio uma cultura de direitos humanos. É importante sairmos da zona de conforto e colocar a cultura como elemento central da ordem social. Dessa forma, não apenas é possível promover o direito de afirmação de culturas diversas, como também alimentar a transformação cultural. A cultura é um pilar da cidadania”, argumentou Pedro Domingues.
A cena política nacional tem projetado uma crescente atuação, em espaços institucionais, de setores religiosos contrários aos direitos sexuais. De acordo com Pedro Domingues, ainda que se promova institucionalmente a diversidade, as resistências não se dispersam. “O preconceito tem na religião um caminho fácil de legitimação. Daí a importância que a cultura evoque a temática da diversidade, pela via da cultura LGBT, provocando o imaginário social. Temos buscado explorar a tensão que os regramentos normativos impõem. Acredito que a cultura é um eixo de negociação, de luta, de militância”, afirmou Pedro Domingues.
A produtora de cinema Lucy Barreto deu um exemplo claro das tensões que tem atravessado o país. O filme “Flores Raras”,dirigido pelo filho dela, o cineasta Bruno Barreto, enfrentou problemas de financiamento. A história do filme, a ser lançado ainda este ano, relata o relacionamento entre a poetisa norte-americana Elizabeth Bishop e a arquiteta brasileira Lota Macedo Soares. De acordo com Lucy, o patrocínio da iniciativa privada praticamente inexistiu. “Salvo um banco, as empresas aonde eu solicitei financiamento negaram apoio por causa da temática. Não queriam suas marcas associadas a um filme centrado em uma relação lésbica”, afirmou a produtora, para quem a temática LGBT, quando retratada no cinema, geralmente reproduz um padrão de comédia rasgada ou de drama. “Meu filme trata a questão de uma maneira séria”, completou.
Para o professor Sérgio Carrara, o país passa por um processo de transformação cultural. “Há em curso uma série de alterações que atingem valores morais. O reconhecimento das uniões civis entre pessoas do mesmo, pelo Supremo Tribunal Federal, em 2011, é um marco nesse sentido. A configuração das famílias tem mudado, os padrões de gênero adquirem novas feições. O empoderamento das minorias LGBT acaba se cruzando com o universo da cultura. Isso está articulado ao crescimento de temáticas LGBTs nas mais variadas produções culturais. É um processo conflituoso. As mudanças causam ruídos diante de valores tradicionais. O conflito cultural é inevitável. O desafio é manter o passo e lutar pela afirmação das diferenças como forma de defesa e promoção da igualdade”, finalizou o coordenador do CLAM.