Uma abordagem muito comum no Brasil associa o planejamento familiar ao controle da natalidade, ao apresentar a pobreza e a violência como frutos da alta fecundidade das adolescentes e mulheres brasileiras. Para o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (ENCE/IBGE), essas opiniões são equivocadas. Em vez de usar a expressão “planejamento familiar” ele prefere utilizar “regulação da fecundidade”, defendendo que esta regulação seja debatida sob a ótica dos direitos sexuais e reprodutivos e não como uma imposição ou um controle coercitivo sobre a liberdade das pessoas de se reproduzirem do modo que julgam adequado.
Prevista na Constituição Brasileira, a expressão ”planejamento familiar” é, segundo o demógrafo, carregada de significados conservadores. “Este conceito não dá conta das necessidades, por exemplo, dos jovens solteiros que necessitam de meios para evitar a gravidez e praticar o sexo seguro, não no sentido de planejar a família, mas sim para usufruir a satisfação do sexo com prazer e sem culpas”.
José Eustáquio acredita que o Brasil só vai passar por uma revolução dos direitos reprodutivos quando os governantes respeitarem o artigo 226 da Constituição Brasileira de 1988, que diz: “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”. (leia o artigo “A Revolução dos Direitos Reprodutivos” no link: http://www.ie.ufrj.br/aparte/usuarios/colunista.php?apelido=JEUSTAQUIO)
Para o pesquisador, cada pessoa ou casal deve fazer as suas opções e, para isso, precisa ter os meios para efetivar os seus desejos em relação ao número de filhos e o momento de tê-los. “As pessoas e os casais desejam regular a fecundidade em função do quando, como e quantos filhos querem ter. Alguns não querem ter filhos de forma alguma. Outros querem filhos em idades mais avançadas. Alguns querem começar a ter filhos cedo e terminar cedo. Outros querem vários filhos, mas com um longo espaçamento entre eles”, exemplifica.
José Eustáquio Diniz Alves graduou-se em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1980, fez mestrado em Economia (1983), doutorado em Demografia pelo CEDEPLAR/UFMG (1994) e pós-doutorado pelo Núcleo de Estudos Populacionais (NEPO/UNICAMP). Atualmente é vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP), pesquisador titular do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e coordenador da Pós-graduação da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE). Seus temas principais de investigação são: gênero, fecundidade e população e desenvolvimento.
Como o sr. vê as opiniões expressas por formadores de opinião e pelo senso comum em relação à questão da fecundidade no Brasil?
Existem correntes dos formadores de opinião e do senso comum que acreditam haver uma explosão populacional no Brasil, que os pobres se reproduzem como coelhos e que a pobreza e a violência são frutos da alta fecundidade das mulheres brasileiras. Contudo, os dados dos censos demográficos e das pesquisas mais recentes indicam que a fecundidade no Brasil continua em queda e que já atingiu o nível de reposição de 2,1 filhos por mulher. Este número indica que a população brasileira vai parar de crescer assim que passar o efeito da inércia demográfica.
As regiões e as cidades mais pobres não são as mais violentas e as aquelas mais violentas não são as com maior fecundidade. A cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, é uma das cidades com menores taxas de fecundidade do Brasil. É certo que existem diferenças entre o “asfalto” e a favela, pois as mulheres mais pobres possuem maior número de filhos. Mas, mesmo nas favelas do Rio de Janeiro, a fecundidade é mais baixa que na maioria das cidades brasileiras. Dizer que a pobreza e a violência são frutos da alta fecundidade é simplificar a questão e ignorar as complexas causas destes fenômenos.
(Veja o artigo “A fecundidade no Rio de Janeiro” no link: http://www.ie.ufrj.br/aparte/usuarios/colunista.php?apelido=JEUSTAQUIO)
Sob que ângulo a questão deveria ser debatida?
A questão da regulação da fecundidade e do planejamento familiar deveria ser debatida sob a ótica dos direitos sexuais e reprodutivos e não como uma imposição ou um controle coercitivo sobre a liberdade das pessoas. Diversos estudos mostram que os pobres possuem mais filhos que as classes média e rica, não porque desejam uma família grande, mas sim porque não têm acesso às informações e aos métodos contraceptivos modernos.
A gravidez indesejada é uma realidade entre as parcelas da população que não são cobertas por políticas públicas de saúde adequadas. Muitas vezes para reverter uma gravidez indesejada as mulheres recorrem ao aborto inseguro e acabam por engrossar as estatísticas da mortalidade materna. Portanto, é preciso ampliar a cobertura da saúde sexual e reprodutiva e tornar o aborto legal e seguro.
Educação é a saída?
A educação é uma solução para muitos problemas, mas não é uma panacéia. Homens e mulheres com maiores níveis educacionais têm maiores oportunidades de emprego, de lazer e de conhecimento. Estas são condições básicas para que possam fazer escolhas reprodutivas e colocá-las em prática. Mas além da educação, é preciso ter acesso a um sistema de saúde democrático e universal. Além disto, a legislação precisa discriminalizar o aborto e garantir os direitos reprodutivos, independentemente do sexo e da orientação sexual das pessoas.
No contexto do planejamento familiar, a fecundidade adolescente tem se tornado cada vez mais foco de preocupação das autoridades públicas. O governo do estado do Rio de Janeiro acaba de lançar a campanha “Se cuida. Gravidez tem hora”, enquanto o Ministério da Saúde anuncia a distribuição de 360 mil preservativos a adolescentes até o final de 2007. Como o sr. vê essas iniciativas?
Campanhas educativas sobre gravidez indesejada, desde que bem estruturadas, são bem-vindas. Mas uma campanha pode se tornar um desserviço, se vier para culpar os pobres pela alta fecundidade ou para chamar os adolescentes de promíscuos. Nestes casos, as campanhas estariam servindo para encobrir os verdadeiros responsáveis pela questão e estariam ocultando a irresponsabilidade do governo e a omissão das autoridades públicas com seus deveres constitucionais e legais. Qualquer campanha na mídia tem que estar associada a medidas concretas de ampliação de direitos e de saúde sexual e reprodutiva.
Dar acesso aos preservativos masculinos e femininos é um dever do Estado e, especialmente, do setor de saúde pública. Mas o acesso à camisinha tem que ser acompanhado do combate ao preconceito e da criação de um ambiente de liberdade onde os jovens possam interagir de maneira consciente e com liberdade de escolha.