A edição deste ano da “Campanha 16 dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres” teve início no Brasil no dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra) e termina em 10 de dezembro (Dia Mundial dos Direitos Humanos). Desenvolvida em 135 países há 17 anos, a Campanha abrange quatro datas importantes – o 25 de novembro (Dia Internacional da Eliminação da Violência contra a Mulher), 1 de dezembro (Dia Internacional de Luta contra a Aids), o 6 de dezembro (dia em que 14 mulheres foram assassinadas em Montreal por um homem que culpava as mulheres pelo fracasso dos homens) e o 10 de dezembro (por conta da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada nesta data). No Brasil, onde o Dia da Consciência Negra possibilita articular os recortes de gênero e raça, a Campanha é promovida pela Agende – Ações em Gênero Cidadania e Desenvolvimento, em parceria com redes e articulações de mulheres, feministas e de direitos humanos, órgãos governamentais, empresas públicas e privadas. O tema central deste ano é o papel da sociedade na aplicação e implementação da Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, tendo como slogan “Exija os seus direitos. Está na Lei Maria da Penha”.
Apesar de ser vista como um marco no enfrentamento da violência contra a mulher, a legislação, aprovada em 7 de agosto de 2006, tem recebido críticas e mesmo argumentações de inconstitucionalidade, idéias estas refutadas pelo movimento feminista, cujas críticas são direcionadas, por sua vez, à dificuldade de aplicação da lei por parte de juizes e das delegacias. “A lei não está sendo aplicada tal e qual está prevista. Antes de resolvermos isso, qualquer análise desfavorável a ela é precipitada. Baixar o nível de reincidência, como já acontece em alguns estados brasileiros, a exemplo do Mato Grosso, é o melhor resultado da lei”, contra-argumenta a advogada Letícia Massula, que em 2003 participou do grupo de especialistas que entregou um pré-projeto para a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) e à bancada feminista na Câmara de Deputados Federal, de onde sairia a lei em questão. Letícia também foi membro da Agende entre 2003 e 2005, onde trabalhou como uma das consultoras da “Campanha 16 dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres” no Brasil, e atualmente desenvolve atividades no Centro Dandara de Promotoras Legais, em São Paulo.
Para ela, o que na verdade se esconde por trás das críticas de inconstitucionalidade da lei é a misogenia. “Muitas das críticas à lei Maria da Penha têm esse fundo discriminatório. Para mim é claro tratar-se apenas de misogenia. Ao ratificar a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), o Brasil já admite a possibilidade de adoção de ações afirmativas de caráter temporário para acelerar o processo de igualdade entre mulheres e homens. O Comitê CEDAW entende que a violência é a mais perversa forma de violência contra as mulheres. Inconstitucional é não adotar uma lei dessa natureza, uma vez que o Brasil assumiu um compromisso internacional”, diz ela.
A advogada também lembra que a lei é uma ação afirmativa, assim como o ECA e o estatuto do idoso. “Então falar que ela é inconstitucional porque atende somente as mulheres é não lembrar das leis dirigidas especificamente aos portadores de deficiência física, por exemplo. O que todas essas leis fazem? Reconhecem uma desigualdade histórica e culturalmente construída”, ressalta Letícia.
Segundo ela, no caso da violência doméstica fez-se necessária a criação de uma lei específica, pois a questão precisava ser interpretada por um instrumento legal que trabalhasse suas especificidades. Antes a questão da violência doméstica era contemplada pela lei 9099, a qual criou os juizados especiais criminais, cuja competência incluía os crimes considerados de “menor potencial ofensivo”. Todos os crimes cuja pena máxima não fosse superior a dois anos eram de competência desses juizados , que acabaram incorporando os crimes de lesão corporal leve e de ameaça (basicamente os crimes de violência doméstica). Estes logo se tornaram responsáveis por quase 80% dos casos atendidos nesses juizados. “O que acontecia era que um caso de lesão corporal resultante de um acidente de trânsito ou de uma briga de rua recebia o mesmo tratamento de uma lesão corporal fruto de uma violência praticada por um marido contra a sua mulher. Buscava-se conciliação e acordo. A pena para esses crimes acabou sendo o pagamento de cestas básicas. Muitas vezes o agressor sequer chegava à presença do juiz”, relembra Letícia.
“A maioria dos homens não acredita que esteja praticando um crime ou algo grave. Uma fala recorrente é: ’Não entendo o que estou fazendo aqui. Sou um trabalhador honesto’. Ele não acredita que bater na mulher é algo reprovável. A lei permite que ele reflita sobre o ato grave que acabou de praticar. Já atendi casos em que o marido chegava em casa e dizia: ’É muito barato te bater. Só vale uma cesta básica’. A situação acabava ficando pior do que se ela não tivesse denunciado”, recorda a advogada.
Para ela, a lei é importante porque reconhece um padrão especifico de violência. “Ela define o que é violência doméstica contra as mulheres. Ela não cria qualquer crime novo, e sim procedimentos para lidar com situações relacionadas à violência doméstica e familiar. Não existe o crime de violência doméstica, mas sim o crime de furto praticado no contexto da violência doméstica, ou um crime de homicídio em situação de violência doméstica..A lei Maria da Penha define violência física, sexual, patrimonial e moral, e vai dizer o que significa espaço doméstico e relações de afinidades entre mulheres e homens, definições estas antes inexistentes na lei brasileira”, avalia.
Somente no caso da lesão corporal (artigo 129 do Código Penal) é que a nova legislação aumentou a pena para três anos. “Neste caso, ela trouxe um procedimento especifico para atender uma situação específica, que o procedimento comum não estava dando conta”, explica a especialista, lembrando que a lei estabelece prisão em flagrante, que pode ser relaxada. Na prática, o agressor vai preso se não cumprir as medidas protetivas ou se der algum motivo para o juiz acreditar que sua mulher está correndo risco com ele solto. Por exemplo, se ele descumprir a distância, estabelecida pelo juiz, que deve ser respeitada entre ele (o agressor) e a mulher.
Na análise da advogada, é necessário reconhecer a desigualdade material. “A lei Maria da Penha foi uma resposta criada pela sociedade para acelerar o processo de desigualdade”, diz ela, lembrando um dado do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), responsável pela elaboração do índice de desenvolvimento humano. “Há dez anos, desde que começou a agregar a questão do gênero, o PNUD relata que mulheres e homens não têm o mesmo nível de desenvolvimento humano e que nenhum país trata tão bem as mulheres quanto trata os homens. Todos somos iguais no papel, não na prática”, analisa.
Por outro lado, Letícia observa que, embora a lei Maria da Penha estabeleça o papel das delegacias especiais, do Judiciário e dos juizados especiais, a lei não está sendo aplicada exatamente como foi estabelecida. “Existe uma dificuldade de aplicação da lei por parte dos juízes e das delegacias. A mulher faz o boletim de ocorrência (BO) hoje, e a delegada não quer fazer de novo caso haja uma nova ameaça ou uma outra agressão. A lei também estabelece que é obrigação do(a) delegado(a) informar às mulheres sobre os direitos que ela tem e em relação às medidas protetivas pertinentes à sua situação, mas isto não acontece na prática em muitos casos. As mulheres estão sendo desestimuladas nas delegacias a levarem adiante a ocorrência”, revela.
Para a advogada, são necessários um trabalho de capacitação, e uma atuação forte da Corregedoria e da Ouvidoria da policia. “A mulher chegou ali o delegado tem a obrigação de atender bem”, sustenta. Em relação às falhas do Poder Judiciário no cumprimento da lei, ela diz: “O Judiciário espelha a nossa cultura. É composto por pessoas que foram educadas num contexto machista em relação ás mulheres, numa cultura patriarcalista”.
A seu ver, a questão do agressor poderia ser melhor trabalhada pela lei, uma vez que se não houver uma mudança de comportamento na vida do homem que agride, a situação da mulher agredida continuará sendo de risco. “Por isso é importante trabalhar também o agressor, pois ele não vai ficar preso o resto da vida. O que acontece é que ele acha que tem permissão social e cultural para corrigir o comportamento de sua mulher, assim como um pai tem essa permissão em relação aos filhos. Algumas mulheres dizem entender isso, ao afirmar: “Sou uma boa mãe, uma boa esposa. Não sei por que ele fez isso”. Por trás dessa afirmação, elas estão dizendo que se não fossem todas essas coisas, elas mereceriam ser punidas dessa maneira, apanhando. As mulheres têm que enxergar que não se trata de uma questão de mérito, é um direito de qualquer ser humano viver sem violência. Esta questão ainda precisa ser trabalhada socialmente”.
Ela observa que embora os homens saibam que agora a situação ficou mais complexa com a lei, ainda se precisa trabalhar melhor o agressor. “Para tanto, seria preciso um trabalho de reflexão visando uma mudança comportamental deste homem e na sua maneira de enxergar sua masculinidade e o papel de sua companheira”, sugere a advogada.