CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Violência por preconceito

María Mercedes Gómez é diretora do Departamento de Linguagens e Estudos Socioculturais da Universidad de los Andes, Bogotá, Colômbia, desde 2005. É filósofa, especialista em estudos penais, Mestre em estudos de gênero e Ph.D. em teoria política. Desenvolveu seu trabalho em filosofia do direito, sociologia jurídica, teoria social e política e estudos de gênero e sexualidade. Atualmente trabalha num livro sobre violência por preconceito sexual, tem várias publicações sobre o tema, além de artigos sobre teoria de gênero e direito e pornografia.

Como a sra. chegou ao tema da violência por preconceito?

Em minha dissertação de mestrado, sobre a proposta do feminismo radical de censurar a pornografia (um debate quente na teoria feminista), começou a minha preocupação por esta questão: o que o direito pode resolver? Esta pergunta apontava para os temas de gênero e sexualidade: o que estamos esperando ou como estamos aproximando as demandas sociais do direito, principalmente quando existe um forte investimento com relação às instâncias jurídicas por parte dos movimentos sociais. No caso dos “crimes de ódio” investem-se energia e recursos em lutar pelo aumento das penas para os agressores: instituir penas mais severas vai assegurar que nos matem menos, que matem menos aos transgêneros? Tenho minhas dúvidas.

Um ganho que obtive trabalhando este tema da violência foi o de unir muitos dos tópicos que tinham me interessado anteriormente: minhas preocupações sobre as teorias do reconhecimento e minhas críticas às estratégias de reconhecimento, assim como a questão da representação política. Na noção de crimes de ódio encontrei uma forma de colocar tanto a questão da lei, como as demandas dos movimentos sociais, sobretudo nos Estados Unidos, que foi onde desenvolvi em larga medida meu trabalho. Neste momento estou focada no caso canadense e na situação na América Latina.

Em que consiste a sua proposta de distinguir analiticamente entre discriminação e exclusão?

Há dez anos o trabalho acadêmico específico sobre violência contra as sexualidades diversas nos Estados Unidos era escasso, a grande exceção eram as pesquisas do psicólogo social Gregory Herek e alguns artigos que ele, em companhia de Kevin Berrill, coeditou em 1992 num livro titulado Hate Crimes: Confronting Violence Against Lesbians and Gay Men. Além disso e de algumas aproximações da teoria legal crítica ao assunto, havia textos mais gerais sobre as leis contra os crimes de ódio, com motivações que incluíam a orientação sexual, e muitos textos sobre preconceito e discriminação. Todos eles eram tratados como sinônimos na hora de determinar causas e propósitos da violência; inclusive as noções de “discriminação” e de “exclusão”, embora sejam, ainda em sua definição mais simples, distintas: a primeira supõe ocupar um lugar de subordinação numa certa estrutura hierárquica, enquanto a outra analisa a incompatibilidade que existe entre dois elementos para compartilhar um campo dado.

Agora, essa diferença entre discriminação e exclusão não é fundamental na hora de estabelecer certos resultados jurídicos, mas certamente o é na hora de realizar um diagnóstico social, porque fazendo essa distinção podemos identificar, revisar como e por que os usos da violência diferem e não estão relacionados com os mesmos preconceitos. Deste modo pode-se fazer um diagnóstico mais preciso dos preconceitos que atingem os grupos sociais e pensar em soluções.

Por este motivo trabalho a distinção entre violência que hierarquiza e violência que exclui. Quando procurei no dicionário essas palavras, exercício que faço sempre que estou trabalhando com categorias, me dei conta que num conceito prima a idéia de inferioridade de um dos elementos da relação e, no outro, o de liquidar, eliminar. Não é a mesma coisa quererem nos eliminar e quererem nos manter subordinados. Assim, então, o excluído pode ser entendido como o constitutive outsider proposto por Derrida, ou o que Laclau enuncia com a noção de “limite”, aquele que, por um lado, permite a coerência do sistema, mas por outro ameaça destruir o próprio sistema.

A partir destas distinções analíticas posso explicar como as dinâmicas raciais, sexuais e de gênero se enquadram num esquema de exclusão ou discriminação. Inspirada na classificação de tipos paradigmáticos de Nancy Fraser, acredito que raça e gênero são categorias mais freqüentemente relacionadas à violência hierárquica: certos episódios de violência contra os afro-americanos – por exemplo os linchamentos em meados do século XX – o e a violência contra as mulheres, costumam ter como objetivo manter subordinados aqueles que sofrem a agressão e gozar, de certa maneira, dos benefícios que se supõe advirem dessa subordinação. Diferentemente, a violência excludente supõe que a entrada de certos sujeitos em meu mundo causaria o seu desmoronamento, portanto sente-se como legítimo produzir uma série de mecanismos para eliminar tais sujeitos. Isto, por exemplo, é ilustrado pelos esforços das terapias como as lobotomias, populares nos anos 50 nos Estados Unidos como “cura” para a homossexualidade.

Por que prefere falar de crimes por preconceito e não de crimes de ódio?

Uma primeira coisa é que há que separar a noção de ódio da noção de crime. O ódio é um sentimento que pode virar ou não conduta violenta, é um desgosto profundo com alguém que é diferente da gente, ou que se assemelha tanto que tem que se evidenciar a diferença. Parece-me que a noção de preconceito é muito mais ampla; este argumento não é somente meu, mas da literatura sobre crimes de ódio.

Há dois termos legais usados nos Estados Unidos para esta questão: hate (ódio) e bias (predisposição). Em termos legais bias é mais usado nas leis dos estados, enquanto que, do ponto de vista das leis federais ou em termos da promoção mais mediática destas leis, usa-se muito a noção muito mais impactante de “crime de ódio”. No trabalho de Frederick Lawrence, Punishing Hate: Bias Crimes Under American Law encontramos um debate interessante a esse respeito.

O problema da categoria “ódio” é que é um atributo individual, enquanto que a noção de preconceito requer o social. Os preconceitos são construídos socialmente, quer dizer, o preconceito requer que outros apóiem e confirmem o que eu sinto, assim como as razões que justificam uma conduta violenta contra alguém. Precisamente, esse contexto preconceituoso funciona como uma condição para o êxito do meu gesto violento: para que ele vire um gesto terrorífico tem que estar dado num contexto onde a mensagem seja significativa, o que somente acontece se o preconceito é compartilhado. A violência por preconceito tem um fim simbólico, é uma mensagem, uma ameaça enviada diretamente a uma comunidade, embora inscrita em corpos individuais.

Na Colômbia está presente esta discussão sobre crimes de ódio?

O tema está presente, tem avançado e têm-se criado espaços para pensar o assunto, mas não há muitos trabalhos nem iniciativas públicas, há muito por fazer. Encontra-se em curso, neste momento, a elaboração de uma Lei Estatutária sobre a Discriminação, promovida pela Defensoria del Pueblo em concertação com diversos setores sociais; existe também o espaço do Ciclo de Cinema Rosa, que tem dedicado boa parte de seus encontros acadêmicos a temas de violência homofóbica e crimes de ódio. Há também os relatórios que Colômbia Diversa realiza desde 2005 sobre a situação dos direitos humanos das pessoas LGBT e nos quais a violência homofóbica é um tema central. Este ano organizamos um seminário entre Colômbia Diversa e a Universidad de los Andes com apóio de Colombia Diversa e da Red Alas sobre violência por homofobia comparando com Estados Unidos, Canadá e Colômbia. Também participei de uma capacitação sobre estes temas para funcionários da Promotoria realizada por Colômbia Diversa em associação com o Centro Comunitário LGBT de Chapinero. Sei que em Medellín e em Bogotá há pessoas trabalhando com apóio da prefeitura. O pessoal de Promover Ciudadania fez uma enquête sobre homofobia em Bogotá e segue trabalhando a respeito. Também devem ser reconhecidos os esforços dos transgêneros. Enfim, há várias frentes e grupos atuando, mas necessitamos mais coordenação e diálogo.

Embora haja no país muitos trabalhos acadêmicos sobre violência, estes não tratam de questões relativas às sexualidades diversas ou dissidentes. O trabalho de Miriam Jimeno sobre crime passional (que trata de questões relativas à masculinidade e à violência intrafamiliar) seria o que mais se aproxima a este tema. Mas esses trabalhos tampouco abordaram diretamente questões relativas a sexualidades não-normativas.

Neste sentido, o tipo de violência de que falo se diferencia muito da violência envolvida no que se tem chamado de “crime passional”. Uma diferença é que nos ataques contra as sexualidades não-normativas a maioria das vezes o agressor não é conhecido (embora muitos crimes homofóbicos fazem-se passar por crimes passionais). Seguindo com a distinção analítica que proponho, eu pensaria que, na maioria dos casos, os crimes passionais heterossexuais estão na ordem da violência hierárquica, isto é, são ataques entre pessoas com laços afetivos para manter a subordinação. De fato, a maioria das vezes tem a ver com ciúmes, isto é, com a questão da propriedade emocional do outro, do corpo do outro. A violência contra sexualidades não-normativas tem mais a ver com atos cujo objetivo é eliminar o outro e não mantê-lo subordinado. Porém, desde já, há também o gozo em desfrutar o proibido da pulsão sexual por pessoas do mesmo sexo, sempre e quando este gozo permaneça secreto. Torná-lo público pode ser o limiar entre um gesto discriminatório e um gesto excludente.

Como entra o crime passional nesta discussão sobre crimes de ódio?

Tenho desgosto profundo pela noção de crime passional, porque acredito, como Jimeno, que esconde e invisibiliza outras formas de exercício do poder. É muito problemática, sobretudo quando serve para justificar um atenuante, pelo efeito simbólico do mesmo. Quando dizem a você que um certo evento é um crime passional sugere-se que de certa forma a “vítima é a culpada”, isto é, que provocou de tal maneira o agressor que fez com que este perdesse as estribeiras e não pudesse se conter. Em julgamentos de maridos que mataram as suas esposas, noivas, objetos de desejo ou rivais, o uso da emoção violenta como atenuante sugere que é compreensível que um homem perca as estribeiras por ciúmes. Seria interessante ver o que acontece em casos em que as mulheres matam os seus agressores em legítima defesa. Anos atrás vi um documentário, sobre mulheres que estão na prisão nos Estados Unidos por terem matado homens abusadores, que assinalava uma porcentagem de mais de 20% de diferença para mais nas sentenças que recaíam sobre elas, em relação às que recaiam sobre homens julgados numa situação similar.

Observemos um outro caso: o fato de se outorgar um certo grau de legitimidade a qualquer mulher ou homem que mate outra pessoa porque foi objeto de uma “provocação homossexual”. Nos Estados Unidos há um atenuante específico que se chama gay panic defense, que funciona como o atenuante “ira e intensa dor” na Colômbia e noutros países da região. O que justifica o uso deste atenuante é a noção de que a pessoa aterrorizou-se de tal maneira diante de suas próprias tendências homossexuais ou das de outros que perdeu o controle e, portanto, o Estado de certa forma justifica a sua conduta. Não estou em desacordo com que haja atenuantes em certas circunstâncias; acredito que há momentos em que os atenuantes têm razão de ser, mas em termos gerais atenuantes por crimes passionais deveriam ser eliminados dos Códigos Penais porque estão respaldando legalmente preconceitos sociais e culturais.

Como é o panorama legislativo na América Latina sobre o tema com relação à Colômbia?

Nos países de língua castelhana da América Latina, o único país que tem leis contra os crimes de ódio é o Uruguai. No Peru há uma lei contra a discriminação que de alguma maneira considera a questão; Costa Rica o faz na legislação de Aids e no México há alguma coisa, mas também está sob a rubrica discriminação.

Minha posição é que há que ponderar muito bem o que se obtêm com as leis, porque em termos gerais as leis sobre crimes de ódio tal e como se estabeleceram nos Estados Unidos são pouco eficazes. Creio que há que trabalhar em outras direções. Embora simbolicamente importante, muitas vezes ter uma lei costuma ser a maneira de dizer: já solucionamos o problema. Minha experiência nos Estados Unidos me leva a pensar que as leis se implementam e têm uma eficácia instrumental muito reduzida. Eu gostaria que tivéssemos muito cuidado com isso na América Latina, porque em geral já temos leis suficientes, não precisamos de mais. O que necessitamos é combater a impunidade, a indiferença e os discursos e modelos culturais que incitam, produzem e criam contextos para a violência e o preconceito sexuais. Creio que temos uma tradição de ativistas de direitos humanos muito forte que deve continuar. Os relatórios de direitos humanos da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e Peru e o trabalho que deles se deriva são louváveis, mas temos trabalho por fazer no âmbito social e com instituições como a polícia.

A Colômbia não tem leis contra a discriminação nem contra crimes de ódio. Como sabemos, o reconhecimento das pessoas LGBT obteve-se, sobretudo, nas sentenças de tutela e de constitucionalidade da Corte Constitucional. A Corte em várias ocasiões tem interpretado a categoria “sexo” do artigo 13 da Constituição para incluir a orientação sexual. Do ponto de vista de leis penais, o artigo 58 do Código Penal consagra fatores de maior punibilidade para condutas violentas por razão de orientação sexual, dentre outras. Ainda há muito trabalho por fazer entre os juízes de vara e outros funcionários judiciais que, com escassas exceções, têm esquemas rígidos de tratamento perante casos que envolvem sexualidades não-normativas. Em cidades como Medellín e Bogotá estão se implementando políticas de respeito à diversidade sexual com apóio dos governos locais e existem grupos, pequenos mas muito engajados, que trabalham educando e buscando soluções em cidades como Cali e Bucaramanga.

Que comparações podemos fazer com relação aos Estados Unidos?

Há uma diferença fundamental, que é a percepção sobre a discriminação e os preconceitos, questão que é menos evidente na Colômbia. Os Estados Unidos têm uma tradição jurídica muito diferente da nossa e nesse sentido as coisas têm funcionado de maneira diferente. As leis contra discriminação sexual nos Estados Unidos têm quase 100 anos e na Colômbia nem sequer se pôs em discussão a Lei Estatutária sobre Discriminação, que já mencionei.

Nos Estados Unidos, as leis contra os crimes de ódio começaram a ser promulgadas em princípios da década de 1980 e a orientação sexual nem sempre esteve na letra da lei, nem ainda hoje está em todas as leis estatais. Foi o trabalho duro de grupos LGBT que conseguiu a inclusão desta categoria, às vezes inclusive à custa de deixar de fora a identidade de gênero ou mesmo o gênero. A inclusão de leis contra os crimes de ódio nos Estados Unidos, sobretudo por razões de raça, religião, origem nacional e orientação sexual, foi um triunfo dos movimentos civis. Algo interessante neste processo foi a coalizão de grupos de esquerda com grupos de direita para fazer com que as leis pudessem ser aprovadas: ali estiveram presentes o movimento pelo direito das vítimas, que era em geral conservador, os movimentos pelos direitos civis, a Liga Anti-difamação e os gays e lésbicas. Essa foi a origem de todo este processo.

Qual é sua reflexão sobre os limites das leis com relação aos crimes de ódio?

Eu acredito que ter leis é importante. O direito tem uma eficácia simbólica que é definitiva para obter certas mudanças, mas em termos gerais o que tenho visto nas leis contra a violência por preconceito, tal como estão desenhadas, é que se tornam úteis, sobretudo, como veículo de interesses políticos. Isto é, os políticos ganham votos das comunidades minoritárias ao apoiarem estes temas; desviam o caráter social dos preconceitos e o centram nos perpetradores individuais. Finalmente é essa forma individualizada de entender um problema que é social que está representado no caráter retributivo da pena.

A segunda questão é um problema particularmente crítico se falarmos da redução da homofobia. Por exemplo, a lógica do aumento das penas não diz nada sobre a relação entre os discursos homofóbicos de um pai de família e o fato de que seu filho de 18 anos espanque um gay na esquina do seu bairro. Então, não digo que a lei não deva existir, mas creio que antes de gastar tantos recursos em lutar por leis, há que se observar muito bem o contexto social. O que mais me preocupa é que corramos o risco de trocar a responsabilidade social pela homofobia com um aumento das penas para os perpetradores individuais.

O terceiro elemento, o caráter retributivo da pena, está muito unido ao anterior. Consiste em pensar que se pode atacar o problema lançando mão de uma sanção exemplar. Penso que essa não é a estratégia mais precisa em se tratando de obter mudanças sociais e processos de conscientização. Não acredito que o aumento das penas seja o melhor que o Estado possa fazer para reconhecer os direitos das pessoas LGBT. Considero que em nível legal é muito mais importante revisar o caráter homofóbico do Sistema Penal em geral do que aumentar as penas por crimes de ódio. Assim sendo, é mais significativo que eu possa vincular o meu parceiro(a) à seguridade social do que darem mais dez anos de cadeia a uma pessoa se ela me matar. Quer dizer, é mais importante para a proteção dos direitos e para a promoção da segurança de lésbicas, gays e transgêneros operar um balanceamento das leis em geral e desafiar aquilo que contribui para fazer de nós cidadãos de segunda classe do ponto de vista jurídico. Esta violência se dá porque tem algum tipo de legitimidade social. O que há que mudar então são os discursos dos meios de comunicação, dos governos, das produções culturais, das religiões, do sistema educativo; porque são eles, quando estão carregados de preconceito, que legitimam a violência.