A edição desta semana da revista Época, uma das principais publicações semanais brasileiras, apresenta o curioso título “Por que os homens procuram travestis”, no rol das centenas de manchetes veiculadas desde a semana passada pela imprensa brasileira e mundial sobre o envolvimento do jogador de futebol Ronaldo e três travestis no Rio de Janeiro. Apesar de contar com análises de renomados especialistas em sexualidade e líderes do movimento trans tentando explicar, como diz o texto, “um dos grandes mistérios da sexualidade moderna – a sedução exercida pelos travestis”, a matéria traz ainda, em certa altura, um questionamento moralista: Está bem da cabeça um homem casado (…) que paga R$ 40 por uma hora de sexo com um homem que parece ser mulher?”.
“Não adianta o corpo do texto da revista ter análises mais consistentes se a conclusão coloca a questão na vala comum onde sempre esteve: no rol das praticas condenáveis”, avalia a cientista social Larissa Pelucio, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero (Pagu/Unicamp) que escreveu vários artigos e defendeu sua tese de doutorado sobre a temática. A especialista acredita que o caso Ronaldo é um evento bastante propício para se refletir acerca da forma como a imprensa se refere, trata e veicula notícias que envolvem o segmento GLBT. “Infelizmente,o caso reforça o que de alguma forma já sabíamos: a recusa e resistência da imprensa em reconhecer a travesti como um tipo de expressão de gênero diferente da homossexualidade exacerbada ou caricatura. Ela não é um homem vestido de mulher”, ressalta.
Na verdade, a questionável manchete da Época e de outras publicações – a concorrente revista Veja, por sua vez, estampou “A escolha de Ronaldo” na capa – expressa o que o senso comum pensa. A grande questão em relação à mídia é que esta não problematiza esse olhar, apenas o reforça, apesar dos diversos estudos já desenvolvidos que desconstroem essa visão transfóbica. E essa é a crítica de intelectuais e de organizações que defendem os direitos de pessoas GLBT. A Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) divulgou nota oficial sobre o episódio (clique aqui e leia a carta), criticando a abordagem preconceituosa realizada pela mídia e pela polícia.
Na análise da pesquisadora, o caso Ronaldo “reforça todos os preconceitos e binarismos simplificadores da sexualidade e a hierarquia do sexo bom – homem e mulher com fins procriativos sem nenhum brinquedinho no meio. Algo muito mais presente no discurso do que na prática”, questiona. Dentro desta pirâmide do bom sexo e do mau sexo, a cientista social acredita que, se no lugar da travesti estivesse uma mulher (biológica) profissional do sexo, certamente o jogador estaria “uns degraus mais acima” na consideração da sociedade. “Apesar de se tratar de sexo pago, fortuito, sem fins procriativos, ele estaria envolvido em um escândalo com uma mulher biológica. Sendo assim, não seria a mesma coisa. Aliás, espera-se que os homens cometam excessos, entre eles o sexual”, diz.
Segundo ela, o caso tomou esse tipo de repercussão porque mexe com o ícone da masculinidade hegemônica nacional – o jogador de futebol. Há alguns meses, um jovem ator de novelas também tornou-se capa de jornais em situação semelhante. “Há uma diferença entre os casos. Não se conseguiu tirar do ator ou atriz a suspeita sexual, por isso o grande público perdoa certas coisas. Existe um acordo tácito de que no ambiente da cultura artística certas coisas são permitidas, como casamento de pessoas mais velhas com mais novas, por exemplo. Quando atores ou atrizes são envolvidos em casos em que recaem suspeitas sobre sua sexualidade, a tendência é dizer: “Eu sabia! Eu sempre achei”. Diferente de quando o envolvido é um jogador de futebol. Nesse caso, estamos lidando com a associação primária de menino-bola-força-competição-virilidade. Ainda mais quando esse menino vem das classes mais baixas, ascende socialmente e casa com mulheres loiras”, analisa.
Outro aspecto importante levantado pelo caso Ronaldo, na análise da pesquisadora, foi constatar como a sexualidade ainda é o principal segredo de uma pessoa. “A sexualidade é definidora do sujeito. A travesti não tem uma referência humana se não for sua sexualidade. Qualquer pessoa que se envolve com ela vai estar maculada por essa verdade centrada completamente na sexualidade. O fato de o caso Ronaldo ganhar todo esse relevo mostra como a sociedade pensa a sexualidade. Há uma economia política da variabilidade sexual, isto é, um leque permitido, uma restrição do que sexualmente pode ser consentido e pensável. Ela vai reger o que é mais ou menos aceitável. Mas isto não existe: a sexualidade é tão plural quanto a própria humanidade”, afirma..
Para Larissa, o que mais perturba a sociedade é que o caso do jogador revela uma sexualidade fora da norma. “Esse rapaz rico vai ter sua sexualidade posta em xeque porque se envolveu com pessoas maculadas e desviantes. Ele enganou o Brasil, por isso, para ele a vergonha é uma punição. Para a travesti o castigo é criminalizar. Ela tem que acabar na delegacia de polícia, na cadeia”.
Mocinhos e bandidos
O caso trouxe à tona a visão que a sociedade tem das travestis. “Ainda há na nossa sociedade a visão da travesti como um ser poluidor, que um homem de bem não deveria procurar, pois ela suja a quem se envolve. No caso Ronaldo, qual a dúvida que a culpa seria dela? Ela já é errada por si. Um homem vestido de mulher é um embuste, por que tudo, de acordo com o senso comum, se justifica pela genitália. A visão que as pessoas têm é de que a travesti é oportunista, cria uma situação de extremo constrangimento para o cliente ao fazer estardalhaço e se aproveita para extorqui-lo”, assinala.
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Alguns teóricos que estudam o tema, como o antropólogo Don Kulick, professor da Universidade de Nova York que passou um ano desenvolvendo uma pesquisa com travestis em Salvador na década de 1990, apontam que muitas vezes as travestis podem usar o escândalo como estratégia de negociação, ao fazer uso da vergonha e do medo do cliente contra ele próprio. Os resultados do estudo estão compilados no livro Travestis, prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil, que será lançado em português pela editora Fiocruz no fim de maio. Além do lançamento, Kulick dará palestras no CLAM, no dia 21 de maio (14h, auditório do Instituto de Medicina Social) e no dia 26 de maio no Museu Nacional.
“Ninguém está dizendo que as travestis são santas. Não existe mocinho ou vilão nessa história. Há um certo oportunismo, uma manipulação da situação, mas isto faz parte de uma estratégia de negociação de posição na sociedade. Como elas estão claramente no lado subalterno, reverter esse jogo hierárquico é sempre desestruturador. Isso não quer dizer que a pessoa seja boa ou que está fazendo aquilo para se proteger. A vergonha e o estigma colocam a pessoa que está sendo atingida no mesmo campo de quem a atinge. Assim ela passa a usar a seu favor os mesmos termos que ele usa para desqualificá-la”, avalia Larissa.
Para Richard Parker, na cultura popular brasileira o “ser homem” não se dá exclusivamente em sua relação/oposição com o “ser mulher”, mas na relação de proximidade/afastamento com outras masculinidades tais como o machão, o corno, a bicha ou veado. Assim, o homem que se relaciona com uma travesti, teria de guardar larga distância destas últimas figuras. Afirmar essa masculinidade torna-se uma grande preocupação e fator de desestabilização identitária para os clientes, sejam t-lovers ou não. Seus desejos e práticas sexuais os colocam sempre sob o risco de se distanciarem do pólo de maior masculinidade.
Larissa Pelucio sugere, como uma das formas de mudar a abordagem da mídia, não conferir tanto peso a esse tipo de noticia e não trabalhar com o óbvio. “Os meios de comunicação deveriam sair do senso comum da culpabilização”, sugere.
Embora na pesquisa empreendida por Larissa os depoimentos dos clientes sejam carregados de culpa e medo, todos eles, segundo a pesquisadora, demonstram ter consciência do que os atrai na sexualidade trans. “Eles dizem: ‘Mulher é fresca com sexo anal. A travesti sabe fazer sexo oral e mulher não’. Os depoimentos mostram também que eles têm tesão pelo pênis delas. É difícil encontrar um cliente que não queira ver ou fazer sexo oral na travesti. Vê-las ejacular também é um prazer mencionado, além do contato excitante com o sêmen”, relata.
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Homofobia e exclusão
A pesquisadora ressalta que não se deve esquecer o fato das travestis serem as maiores vítimas da homofobia, fato este corroborado por diversas pesquisas acadêmicas. Pesquisas realizadas pelo CLAM nas paradas GLBT brasileiras indicam que 34.4% da pessoas trans entrevistadas sofreram discriminação e abusos perpetrados por colegas ou professoras/es na escola. Por esta razão não surpreende que as pessoas trans possuam o menor nível de educação formal, comparado com os de outras minorias sexuais. No Brasil, somente 17.8% dos gays entrevistados nessas pesquisas não completaram o segundo grau, enquanto entre as pessoas trans esse índice se eleva a 42.4%. Quase a metade (46.2%) das lésbicas entrevistadas fizeram estudos universitários, enquanto apenas 21.4% das pessoas trans freqüentaram a universidade.
A informação disponível sobre violência, incluindo violência letal, contra pessoas trans (especialmente travestis profissionais do sexo) é realmente alarmante. Os surveys mostram que quase 50% reportou haver sofrido violência física por sua identidade de gênero. Entre os homens gays a proporção dos que já foram agredidos fisicamente é muito menor: 20.3%. As ameaças e o abuso verbal são uma experiência generalizada entre as pessoas trans: foram reportadas por 71.2% de todas as pessoas transgênero entrevistadas.
No caso dos assassinatos, tanto no Brasil como no resto da América Latina, a polícia não parece muito preocupada por investigá-los. De uma amostra de 12 assassinatos de travestis acontecidos no Rio de Janeiro nos anos 80 e até início dos 90, a polícia achou os perpetradores de somente dois, e só um deles foi condenado. De fato a polícia constitui uma importante fonte de violência contra pessoas transgênero, principalmente contra travestis que realizam trabalho sexual. (Fontes: Pesquisa Política, Direito, Violência e Homossexualidade, survey realizado nas paradas do orgulho GLBT de Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Recife. Disponível aqui.
“A exposição faz parte da constituição das travestilidades. Uma travesti, por mais linda que seja, é impedida de trabalhar na televisão, fazer novela ou ser aeromoça. Então, trabalhar na rua é o que lhe resta. Mas, ao mesmo tempo em que é boa, por ser um espaço de aprendizado, a rua é madrasta, cansa e desgasta muito. É na rua que um menino efeminado tem a primeira noção da travestilidade. Encontrar um homem de verdade para elas também só é possível no chat da internet ou na rua”, analisa a especialista.
Ela lembra que desde o surgimento da Aids o que houve de positivo foi a organização do movimento social e as pressões que resultaram em políticas públicas positivas que contemplaram as travestis, mas critica o fato dessas políticas estarem sempre centradas na saúde. “Esse trabalho não se dá somente em um segmento, tem de ser feito inter-setorialmente e abarcar Educação, Justiça, Trabalho. Os direitos vieram via Aids, numa associação perversa. Apesar de ser um ganho, cria-se guetos da saúde, quando o Sistema Único de Saúde (SUS) é uma conquista de universalidade e não de segmentação”, diz.
A pesquisadora acredita que, se aprovada a lei que criminaliza a homofobia no país, a tendência a médio prazo é de mudança. “Até 1988 as pessoas diziam que criminalizar o racismo era bobagem, mas hoje em dia as pessoas se constrangem em ser racistas ou em fazer uma piadinha de negro. Ao pautar uma discussão publica as pessoas são obrigadas a refletir sobre o assunto em questão. Não acho que criminalizar a homofobia seja a única solução, mas é uma delas”, conclui.