CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

O gênero na medicina

Historicamente, diversas concepções foram se configurando para tentar explicar diferenças entre homens e mulheres. Nesse processo, as ciências biomédicas exerceram um papel relevante na definição dos significados atribuídos aos corpos, influenciando as discussões sobre gênero e sexualidade. A antropóloga Daniela Manica, em sua tese de doutorado, analisou a trajetória de pesquisas clínicas do médico brasileiro Elsimar Coutinho e discutiu como a medicina, os aprimoramentos tecnológicos e o surgimento da pílula anticoncepcional foram determinantes nas últimas décadas.

O médico Elsimar Coutinho é especialista na área de reprodução e, ao longo das últimas décadas, desenvolveu métodos contraceptivos e tratamentos hormonais. Sua notoriedade foi ampliada em 1996 com o lançamento do livro “Menstruação, a sangria inútil”, cuja ideia central é compreender a menstruação como um acontecimento não natural, fruto da intervenção humana sobre o processo reprodutivo. Determinados métodos contraceptivos, destaca Daniela Manica, trariam também como efeito a interrupção dos sangramentos periódicos, o que devolveria à mulher esse suposto atributo “natural”. Em entrevista ao CLAM, a antropóloga demonstra como a ciência médica contribui para construir concepções sobre gênero e sexualidade.

Como é a ideia da desnaturalização da menstruação? O que isso significa?

O argumento central de Elsimar Coutinho é de que a menstruação não é natural, ela é um efeito do controle que a sociedade historicamente exerceu sobre o processo reprodutivo. Segundo ele, as mulheres contemporâneas, principalmente as do último século, têm um controle mais efetivo sobre sua fertilidade, também em função dos próprios métodos contraceptivos que foram desenvolvidos. Esses métodos acabaram produzindo episódios mais frequentes de sangramento do que as nossas bisavós, por exemplo, que tinham um filho atrás do outro. Há um século e meio, as pessoas tinham mais filhos, o que não acontece atualmente.

A ideia, então, é a de que as mulheres são, por obra da natureza, destinadas exclusivamente à reprodução?

Sim, como se o destino natural das mulheres fosse a maternidade. No estado hipotético da “natureza”, elas ficariam sempre grávidas ou amamentando. Nessas situações, não haveria menstruação. Atualmente, o controle sobre o processo reprodutivo mudaria esse panorama.

E o Dr. Elsimar é crítico a isso?

Não sei se ele é exatamente crítico. Ele usa esse argumento para justificar a contracepção hormonal, que foi um campo de pesquisas que ele se dedicou em sua trajetória, desde a década de 1950. Ele desenvolveu muitos métodos contraceptivos. Então, acredito que isso o ajudou a procurar uma justificativa para o uso desses métodos.

A pílula foi formatada para reproduzir os sangramentos. Ela poderia não ter esse efeito, mas isso foi uma forma que a indústria farmacêutica encontrou para transformar tal método num produto possível para a época, a década de 1960. Foi uma saída para possibilitar que fosse viável socialmente, reproduzindo os sangramentos.

Na sua tese, você fala em mediação da tecnociência como uma forma de devolver à mulher uma condição natural. Nota-se que a medicina, nesse processo, tem um papel importante em criar significados sobre o corpo. É possível afirmar que há uma maior visibilidade na medicina sobre os corpos femininos em relação aos masculinos? Isso tem alguma implicação como um marcador de gênero?

Com certeza, definitivamente há uma leitura clara do corpo feminino como ligado à reprodução, e tudo aquilo que supostamente diz respeito aos aspectos reprodutivos tem uma visibilidade muito maior para as mulheres do que para os homens. A própria área dos estudos sociais da ciência, do ponto de vista feminista, se desenvolveu com bastante ênfase e crítica sobre determinados pressupostos e abordagens científicas.

A antropóloga Emily Martin faz um estudo da linguagem reproduzida pelos sistemas médicos em que a reprodução é o paradigma. A finalidade reprodutiva definiria as mulheres. Então, todos os sinais, todos os fenômenos que acontecem no corpo das mulheres estão relacionados à reprodução. Tudo aquilo que acontece no corpo feminino é lido a partir desta perspectiva e, dessa forma, a menstruação, assim como a menopausa, são compreendidas como falhas no sistema.



A mulher vai muito mais ao médico do que o homem. Para ela, existe a ginecologia, mas não há uma ciência análoga para ele, ou seja, ela tem um corpo mais medicalizado. O que isso reflete?

Isso se reflete no caso do homem não só no que diz respeito à contracepção. A única coisa que se produziu com a mesma ênfase pela indústria farmacêutica foram os remédios para tratar disfunção erétil. Isso já diz muito sobre como se equacionam homens e mulheres em matéria de sexualidade e reprodução. A mulher está ligada à reprodução e o homem, por seu lado, à sexualidade. O que se busca para eles é uma ênfase na sexualidade.

Inclusive, os estudos sobre fertilidade e infertilidade masculinas são muito incipientes. Não existe, por exemplo, uma pílula masculina, um produto que há trinta anos vem sendo anunciado pela indústria farmacêutica, mas que nunca de fato foi produzido. Há vários estudos sobre possíveis substâncias com tal efeito, mas nada efetivamente foi produzido, porque há uma série de entraves sociais, do ponto de vista das perspectivas de gênero, que impedem que isso aconteça.

Historicamente, houve uma assimetria nos enfoques mais usuais em relação às concepções sobre homens e mulheres. Na história da reprodução e da contracepção, a ênfase dos médicos para entender esses fenômenos do ponto de vista bioquímico foi muito maior no caso das mulheres. Evidentemente, a partir do impacto da AIDS, os métodos de barreira, como a camisinha, re-equacionaram essa questão. Passa-se a falar sobre a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. E aí o foco nos homens como foco de políticas de saúde passa a ser um pouco maior.

Esses métodos de barreira impactam a distribuição dos métodos contraceptivos hormonais, mas não tanto. Se analisarmos, por exemplo, os não hormonais, como a laqueadura e a vasectomia, também observamos essa diferença. Muito mais mulheres foram esterilizadas do que homens. Então, isso também é um reflexo dessa diferença, uma forma como se olha para as relações entre gênero, sexualidade e reprodução.

É evidente que, aos poucos, isso está mudando. Hoje em dia, já se começa a falar em andropausa, há uma percepção maior sobre a infertilidade masculina. Mas, comparativamente, considerando-se a última metade do século XX, é brutal a diferença.

Essa visão reprodutiva sobre a mulher está ligada a fatores religiosos e morais?

Sim, tem a ver, mas há vários processos que acontecem ao mesmo tempo. A ciência e a religião são sistemas culturais de pensar a existência humana. A própria questão da contracepção, do desenvolvimento dos métodos contraceptivos, está dentro de um contexto mais global, de regulação da sociedade. Existe um potencial político por trás desse processo, de controlar o número de nascimentos, uma preocupação demográfica que no fundo fala de um modelo de sociedade no qual vivemos. Tem a ver também, no caso dos métodos contraceptivos, com o desenvolvimento do capitalismo, a criação de uma indústria farmacêutica de dimensões globais.

Há uma discussão sobre biopolítica que é muito importante nesse contexto. Existe uma preocupação com a organização social de uma forma mais ampla, que vai desde o tamanho da população de um país até o tamanho da família. Existe um reordenamento das relações para construir famílias menores, que têm, por sua vez, uma necessidade de consumo maior. Ao mesmo tempo, o Estado de bem-estar-social vai sendo enxugado. As pessoas precisam se constituir como consumidoras. Não há mais Estado provendo com qualidade educação e saúde como noséculo XX. Então, tudo isso acontece ao mesmo tempo. Não basta falar apenas em ciência e religião, que definem como nós pensamos essas questões.

É evidente que temos uma tradição androcêntrica na forma como a religião olha a mulher. Isso talvez seja mais evidente na obstetrícia, na atual relação medicalizada das mulheres com o parto. Há uma perspectiva negativa sobre o parto, como também ocorre na menstruação. Por sermos de uma matriz católica, podemos relacionar como algo muito negativado e que diz respeito ainda à forma como a mulher é recebida no serviço de saúde. Todo esse momento crucial da existência, da geração de vida, de prevenir, de interromper ou levar ao final uma gestação, desperta muita atenção socialmente. E há muitos poderes que perpassam as concepções religiosas e a ciência.

O governo federal brasileiro lançou, em 2009, a Política Nacional de Saúde do Homem. Uma discussão que o projeto provocou focava a maneira escolhida para angariar a atenção dos homens, mais resistentes à rotina médica do que as mulheres: uma das portas de entrada eram os problemas de disfunção sexual. De que forma você analisa essa discussão, dentro da lógica de que medicina e gênero são domínios que estão em constante diálogo?

É mais difícil que os homens, de maneira geral, busquem ajuda no que diz respeito a problemas de saúde, procurem apoio médico. Isso tem a ver com os modelos de masculinidade vigentes na nossa sociedade.Quando, por outro lado, para as mulheres, é recomendado que a partir da primeira menstruação ela procure um ginecologista para cuidar da sua fertilidade, da sua saúde. Há um monitoramento extremamente cuidadoso sobre todo o processo reprodutivo feminino, desde o começo da sua vida fértil. Existe um investimento muito grande nessa frente de controle da reprodução.

Você fala que as discussões sobre a masculinidade têm alcançado mais visibilidade. É plausível que tais discussões cresçam mais e se equiparem às que existem sobre a mulher?

Não sei. Não sou nem otimista, nem pessimista. Há uma visibilidade maior para os homens. Isso está relacionado a uma ruptura mais geral com os sistemas antigos de pensar as diferenças de gênero, como o patriarcalismo. Os movimentos feministas, homossexual, LGBT, enfim, que questionam a fixação dessas diferenças, têm um impacto sobre isso.

Em relação à questão da andropausa e da medicina, é mais complicado. Do ponto de vista das políticas públicas, há uma tentativa de captação de um público que é difícil de ser incluído no sistema. Existe uma certa repulsa dos homens para lidar com saúde. No caso das mulheres, é um processo mais naturalizado por conta da própria questão reprodutiva.

Cada caso é uma situação diferente: um homem com problemas cardíacos tem um atendimento, tem vias de entrada diferentes no sistema de saúde. O que se está tentando é captar esse pessoal antes. Há uma preocupação, do ponto de vista das políticas públicas de saúde, de captação de usuários, que é válida. É uma estratégia. Não sei se isso significa uma mudança estrutural na forma como a sociedade pensa saúde e relações de gênero.

Mas há um esforço do Estado nesse sentido, não?

Sim, e que só é possível, nesse momento, porque há um questionamento sobre uma série de temas. Há uma exposição da fragilidade do modelo de masculinidade hegemônica que permite que você repense essas questões. Mas, isso não acontece da mesma forma em diferentes segmentos sociais, por exemplo. Existem diferenças regionais, países diferentes, não se deve generalizar.

Observamos que há uma tendência geral, uma preocupação crescente com a gestão individual da saúde, uma atenção mais preventiva, e os homens estão nesse processo.