Nesta entrevista ao CLAM, o pesquisador Raphael Bispo, doutorando pelo Museu Nacional/UFRJ e professor do curso de Especialização em Gênero e Sexualidade (EGeS), fala dos resultados preliminares de sua pesquisa etnográfica com as chacretes, dançarinas que auxiliavam o apresentador Abelardo Barbosa, conhecido como Chacrinha, no começo da televisão brasileira.
O trabalho, intitulado “Vivendo do rebolado: gênero e envelhecimento na ascendente indústria cultural brasileira”, investiga as lembranças das dançarinas em relação a esse período de suas vidas, discutindo a percepção de conhecidas chacretes sobre os estigmas e preconceitos que estavam ligados à vida artística nos anos 1970, época da ditadura militar e momento de grande efervescência política, econômica e cultural.
A pesquisa aponta que o sucesso e o renome nas carreiras artísticas de dançarinas televisivas como as chacretes estavam intimamente ligados à capacidade de tais mulheres de trafegar nos tênues limites das críticas e estigmas que pairavam sobre elas. “Num sentido mais amplo, as chacretes que assumiram de certa forma a performance de gênero da ‘puta’, formulada em torno de suas figuras públicas e midiáticas, obtiveram mais prestígio e distinção social entre suas parceiras na disputada e instável carreira artística na TV. No entanto, adotar uma performance pública de ‘puta’ não significa fazer programas, por exemplo”, assinala o antropólogo, na entrevista a seguir.
Durante as décadas de 1960 e 1970, mulheres que desempenhavam atividades artísticas eram taxadas de “mulheres da vida”, enquanto os homens que trabalhavam nesse meio eram qualificados como “homossexuais”. A que você atribui esses estigmas e como eles estão relacionados à moral vigente na época?
Existe uma expressão que era recorrente em alguns periódicos da época e que ilumina bem essa pergunta: “mulheres de televisão”. De certa forma até hoje se faz uso da expressão para referir-se a essa freqüência feminina nos bastidores televisivos que estávamos comentando anteriormente. No entanto, vejo que tal forma de se fazer referência carrega em si também fortes simbolismos e em muitos casos adquire características acusatórias. A expressão serve também como um julgamento moral e uma tentativa de menosprezar a presença delas na TV. Faz-se a associação entre ser uma “mulher de televisão” e ser uma “puta”, uma “prostituta”, uma mulher de “vida fácil” e com a “moral duvidosa”.
É preciso destacar que no período da ditadura militar era recorrente entre segmentos mais conservadores do Brasil a construção de acusações de desvio e anormalidade a certos artistas da época. Além do recurso de cerceamento da liberdade de criação por meio da proibição de peças teatrais, do recolhimento de discos, do corte de verbas e da interdição de shows e espetáculos, tais forças apoiadoras do golpe militar faziam usos recorrentes das acusações de “drogados”, “subversivos”, “putas” e “homossexuais” a fim de satisfazerem suas tentativas de normatização. Inúmeras prisões e processos contra artistas por consumo de drogas – seja este um fato real ou apenas imaginado pelos agentes da repressão – foram executados no regime militar através de um eficiente aparato de denúncia, capaz de mobilizar uma forte ação policial por meio de invasões de domicílio e ampla repercussão na imprensa em geral.
Portanto, categorias acusatórias como a de “puta” e “homossexual” não são aleatórias. Servindo como “exemplos”, a TV e os artistas que por ela passavam tornaram-se também alvos dessas acusações. Eles expressavam com vigor a negação de alguns dos valores mais caros aos grupos detentores do poder, como a disciplina, a produtividade e uma moral rígida e de bases heteronormativas. A crítica que muitos fizeram por meio de suas obras à preeminência de estilos de vida mais tradicionais em nossa sociedade reforçou ainda mais a imagem negativa do artista e intelectual perante a sociedade em geral. Havia a necessidade de certas autoridades em deter tais artistas destoantes, e essas acusações serviam para isso.
Em sua pesquisa, você afirma ainda que o estigma de “prostituta” era negociado pelas chamadas “chacretes” (dançarinas do programa do apresentador Abelardo Barbosa, o Chacrinha) e muitas se beneficiavam dessa fama para obter mais prestígio e distinção na carreira artística. De que forma isso acontecia?
As chacretes eram compreendidas por seus pares como belas mulheres e tinham também como objetivo atrair o “público masculino” para assistir as atrações de Chacrinha, os convidando a compartilhar a TV com as mulheres de sua casa, o “público-alvo” dos programas de auditório, de acordo com as idéias oriundas dos saberes constitutivos do mundo televisivo.
O que a minha pesquisa tem apontado é que o sucesso e o renome nas carreiras artísticas de dançarinas televisivas estavam intimamente ligados à capacidade de tais mulheres em saberem trafegar nos tênues limites de tais críticas de que falávamos anteriormente. Num sentido mais amplo, as chacretes que assumiram de certa forma a performance de gênero da “puta”, formulada em torno de suas figuras públicas e midiáticas, obtiveram mais prestígio e distinção social entre suas parceiras na disputada e instável carreira artística na TV. Veja bem: estamos falando aqui do domínio da construção e formulação de uma imagem pública, de uma persona, da apresentação de si à sociedade como mulher sensual e voraz dentro desse contexto do emergente star system brasileiro.
Adotar uma performance pública de “puta” não significa fazer programas, por exemplo. As chacretes tinham certa noção do quanto uma apresentação de si de maneira erótica e sensual era desejável para o sucesso de suas carreiras de dançarina. O papel desempenhado por elas no âmbito televisivo exigia em seu script mais velado, subentendido, um compartilhamento de sua vida privada, seus amores, suas transas com o público em geral. As lógicas das relações de gênero no âmbito da TV construíam para as dançarinas um lugar específico dentro dele, ao darem um valor especial para seus desempenhos profissionais articulados a suas trajetórias afetivo-sexuais, seus namoros, suas “escapadinhas” com os artistas, suas circulações noturnas pelas boates. Quando isso não foi possível ou não foi feito de maneira plena por elas, sem maiores dilemas, gerou-se inúmeros constrangimentos, como demonstram alguns depoimentos delas hoje, que estão com cerca de 60 anos de idade.
As grandes chacretes fizeram nome por meio das constantes negociações com tais exigências eróticas e o burburinho midiático em torno delas. Participar da TV e fazer sucesso era também adentrar com tudo ao bas-fond televisivo. As dançarinas precisavam ser despojadas no que se refere à exposição pública de suas intimidades. Aquelas que buscaram se resguardar por conta da família e outras demandas sociais e/ou não souberam lidar com o fim da vida anônima não conseguiram seguir carreira na área. O sucesso está intimamente ligado à dedicação ao trabalho de chacrete, não só no palco, diante das câmeras com um bom rebolado, mas também nas exigências feitas a elas no bas-fond, alimentando um estilo de vida que muitas das vezes se confundia com a imagem presente no senso comum da “mulher de televisão” como “puta/prostituta”.
Havia algum controle em relação à sexualidade das dançarinas?
A direção do programa, Chacrinha à frente, costumava suspender a participação das dançarinas por cerca de algumas semanas consecutivas quando sabiam de algum caso amoroso. Na verdade, havia certas gradações em torno desses controles dos relacionamentos sofridos pelas chacretes por parte dos programadores, importante para compreendermos as inflexões de gênero subjacentes ao mundo televisivo da época. Se o artista fosse solteiro, muitas das vezes não havia maiores querelas. O burburinho do bas-fond nas revistas de fofoca trás destaque ao programa e rende muitos dividendos. É preciso, por variadas maneiras, alimentar a atenção do telespectador e romances secretos sempre foram um chamariz e tanto.
No entanto, dependendo da gravidade do caso amoroso – como namorar com artista casado ou não aparecer nas gravações por conta de um relacionamento – a suspensão ou até mesmo a demissão era algo sempre em vista. Porém, o mesmo Chacrinha que nas lembranças de tais mulheres aparece como um pai severo, controlador de suas sexualidades e gestor de uma boa moral em torno de seu programa para a “família brasileira” foi um grande incentivador de uma visão mais erótica de suas dançarinas. Em suas colunas em periódicos da época, por exemplo, costumava escrever notícias sobre as atribuladas vidas amorosas das chacretes.
Assim, a possibilidade de afastamento do meio televisivo das dançarinas por parte da direção devido ao “mau comportamento” surge mais como um mecanismo a fim de controlar e disciplinar as chacretes do que uma efetiva preocupação moralizante por parte dos programadores, preocupados com a imagem de mulheres “putas” que as chacretes poderiam ter na sociedade da época. Nesse sentido, o conjunto de regras que buscavam normatizar as experiências das dançarinas no âmbito desses programas é ambíguo com relação às exigências morais feitas a elas, ora tentando cercear seus comportamentos sexuais por meio de vigias e proibições, ora estimulando a sensualidade delas nas gravações e nos circuitos noticiosos como um todo.
Tais exigências morais feitas às chacretes não são opostas, pelo contrário, se complementam a partir de uma intricada rede de interesses motivada pelos intuitos de entretenimento e sucesso de Chacrinha, equipe e das próprias dançarinas. Proibir as jovens e ao mesmo tempo instigar os telespectadores acerca do potencial sexual que supostamente rondaria as dançarinas era uma fórmula para garantir a audiência e a popularidade ao programa.
Acredita que o estigma sobre atrizes e demais mulheres que trabalham no meio televisivo ainda existe?
É difícil de mensurar como esse preconceito com relação a mulheres artistas ocorre nos dias atuais já que estou focado em tais dançarinas da década de 1960 e 1970. Porém, acredito que de certa forma persistam certos olhares enviesados para mulheres que optam em seguir uma carreira artística, mesmo com as grandes mudanças ocorridas na sociedade brasileira nas últimas décadas no que se refere ao comportamento e à sexualidade das mulheres. Tais formas de preconceito que colocam em xeque questões de gênero e sexualidade sempre foram recorrentes nas artes em geral. Vejo nos jornais e revistas de hoje o quanto ainda são inúmeros os relatos de atrizes que demonstram terem sofrido preconceito ao longo de suas vidas pelo desempenho de atividades artísticas.
Além disso, ser tida como “puta” não é uma exclusividade das mulheres que trabalham na TV e nas artes como um todo. Qualquer tentativa de avaliar negativamente uma mulher em nossa sociedade costuma-se ainda fazer uso de tal categoria, hierarquizando-as e subordinando-as por meio da formulação de dúvidas sobre seus comportamentos afetivo-sexuais. Sendo assim, acredito que persista esse tipo de acusação com relação a mulheres das artes sim, principalmente aquelas que se apresentam ao público não como pessoas dóceis, passivas e dependentes – o processo de construção da imagem pública da cantora Sandy é exemplar nesse sentido – mas sim como uma mulher diferenciada e não-comum, tal como as antigas chacretes ou as dançarinas dos programas contemporâneos.