Para a advogada Leila Linhares Barsted, a defesa do direito ao aborto no Brasil não é uma questão apenas das mulheres, mas de todos que defendem o respeito pelos direitos individuais. Segundo Leila, faltam alianças. “Quando lutamos pelo direito ao aborto, estamos também defendendo o direito de todas as religiões operarem livremente. Neste sentido, todas as pessoas que fazem parte delas e principalmente seus dirigentes, deveriam também estar defendendo o artigo 5º da Constituição, como uma liberdade individual”.
Uma das precurssoras do movimento feminista brasileiro – ela esteve presente na reunião de mulheres na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) em 1975, um marco político do movimento – Leila acredita que, apesar da crise política que se instalou em Brasília, não há razão para retardar o debate no âmbito federal. Rebatendo o argumento usualmente sustentado pela Igreja Católica de proteção à vida, ela afirma: “O Estado não pode ficar refém de um conceito”.
A advogada é uma das diretoras e fundadoras da CEPIA (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação) ao lado da socióloga Jacqueline Pitanguy e recentemente assumiu o cargo de presidente de um Comitê da Organização dos Estados Americanos (OEA), cuja função é avaliar como os países integrantes da OEA estão cumprindo as resoluções da Convenção de Belém do Pará, que trata da questão da violência contra a mulher no continente americano.
A Igreja Católica se coloca contra o aborto apoiada no conceito de proteção à vida. A CNBB (Conferência Nacional de Bispos do Brasil) afirma que a “Igreja Católica brasileira está respaldada nos princípios constitucionais do Brasil”. Isto pode ameaçar o sucesso do projeto de descriminalização do aborto no país?
O Estado brasileiro não pode ficar refém de um conceito. Evidentemente, o que está se formando dentro da mulher é uma forma de vida que poderá ou não evoluir para uma forma de vida humana. Existe uma expectativa que aquele feto poderá se desenvolver para uma forma humana e, para mim, a vida se dá a partir do momento em que você nasce com vida. O direito à vida está em nossa Constituição, mas em nenhum momento foi escrito em alguma lei brasileira que o direito à vida seja desde a concepção. Na década de 80, durante o processo constituinte, de um lado as feministas tentaram propor a inclusão na Constituição do direto ao aborto. Por outro lado, a Igreja, particularmente a Católica, tentava incluir a expressão “direito à vida desde a concepção”. Nós, feministas, não conseguimos incluir o direito ao aborto na Constituição mas conseguimos evitar que essa expressão fosse incluída.
Na construção do Código Penal de 1940, houve reação da Igreja contra a aprovação dos dois permissivos legais para a realização do aborto – em casos de risco de vida para a mulher e em gravidez resultante de estupro. Mas o Código Penal acabou privilegiando o direito da mulher sobre o direito daquele que poderia vir a nascer. Nesses casos, muitas vezes está sendo interrompida a gravidez de um filho que foi desejado, não a de um filho produto de estupro. A legislação concedeu esse direito à mulher porque a vida dela é uma vida plena. Então, entre uma vida plena e uma expectativa de vida, o legislador se colocou a favor da primeira.
No caso de estupro, optou-se pelo direito da mulher de manter a sua integridade e sanidade mental, podendo então interromper essa gravidez. Quando o legislador abre duas possibilidades para o aborto na década de 40, é porque a prática já acontecia, o aborto era um fato na sociedade. A lei está sempre alinhada com a realidade. Quando se aprova uma lei, regulamentando alguma situação, é porque esta situação já está presente na sociedade há muito tempo.
Se a legislação sempre acompanha o que está acontecendo na sociedade, por que ela ainda não mudou, já que é notório o fato de que milhares de mulheres nas últimas décadas recorrem ao aborto clandestino e inseguro e muitas morrem como conseqüência disso?
O legislador não quer se comprometer com seu voto cristão. Quem está demandando pelo direito ao aborto? São as mulheres. Por mais que existam homens e até um setor da área da Saúde envolvidos na defesa do direito ao aborto, na realidade quem tem demandado principalmente esse direito são as mulheres, particularmente o movimento feminista, a partir de meados da década de 1970. A discussão pela legalização ou ampliação dos permissivos legais começou há trinta anos. Durante esse tempo, as feministas têm demandado por isso enquanto os setores religiosos – a Igreja Católica e, nas duas últimas décadas, os evangélicos -, têm se colocado contrários. Apesar de o Estado Brasileiro ser laico, a Igreja Católica tem um poder grande sobre ele. Há pouco tempo, vimos o presidente enviar uma carta à CNBB, comprometendo-se com os valores cristãos da sociedade brasileira. Na realidade, há uma dificuldade do Estado de se descolar dos seus compromissos religiosos e quem paga a conta por isso são as mulheres. E não só em relação ao direito ao aborto, mas quanto a todas as questões relacionadas à sexualidade feminina ou reconhecimento de união civil de pessoas do mesmo sexo, o veto sempre vem dos setores religiosos. Então há uma moral extremamente refratária às demandas das mulheres e também dos setores homossexuais que paralisam uma possibilidade do Estado de avançar.
Mas em 1940, a Igreja também não tinha força?
Não tanto. Existia um Estado bastante forte. Eu não estou defendendo a existência de um Estado forte, muito pelo contrário, mas é curioso perceber que, em momentos de força do Governo – ou porque era uma ditadura ou porque Getúlio Vargas contava com uma base social muito grande -, foi possível se descolar dos dogmas religiosos. Valeria a pena investigar a maneira como aquele Congresso se organizou naquela época e quem eram os congressistas. O que a gente vê hoje em dia são Igrejas com uma presença muito grande nos meios de comunicação de massa. Elas têm canais de televisão e redes de rádio, além dos púlpitos aos milhares. Na década de 40 elas não tinham isso.
A Igreja hoje é mais forte que o Estado?
Neste momento, com o Executivo com a cabeça na guilhotina e o Legislativo destroçado pelas corrupções, certamente as Igrejas passaram a ser uma referência para as pessoas.
Pode-se dizer que, na prática, vivemos realmente num Estado laico?
Quando se fala em Estado, pensa-se numa coisa muito monolítica e o Estado não é monolítico. Existem setores mais e menos laicos. Temos um Congresso Nacional com uma representação muito grande de deputados de estados da união onde a Igreja Católica é forte.
Em 2004, com o governo menos enfraquecido, a questão do aborto foi muito discutida no nível federal, com a realização da Conferência Nacional das Mulheres em Brasília. Agora, existe o anteprojeto de descriminalização e legalização produzido pela Comissão Tripartite, criada pela Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres. A senhora acha ser este um momento propício para a apresentação e debate deste anteprojeto no Legislativo?
Na questão do aborto, não acho que exista um bom momento, porque todas as ocasiões têm sido maus momentos. Na realidade, até mesmo se formos analisar o panorama internacional, nunca há momentos melhores para as mulheres. Não há razão para a gente retardar a apresentação desse projeto. Nesses trinta anos de feminismo brasileiro, o tempo todo a gente avaliou se os momentos eram propícios para apresentarmos os nossos projetos de descriminalização total ou de ampliação dos permissivos legais. Agora temos um projeto de descriminalização e de legalização, porque não basta deixar de ser crime, é preciso também que se torne um direito das mulheres recorrerem à rede pública de saúde para poderem interromper essas gestações indesejadas.
Que argumentos podem ser levados em conta na defesa do direito ao aborto?
O que está em jogo não é ser contra ou a favor do aborto. A questão é: deve o Estado intrometer-se quando uma mulher faz aborto? Deve o Estado prender esta mulher? Toda a discussão sobre o aborto sempre foi muito pautada pela idéia do direito à saúde, do aborto como um direito social, como uma questão de saúde pública. Nós, feministas, temos marcado muito a questão como um direito individual, o direito de decidir, o qual encontra amparo particularmente no artigo 5º da Constituição, que trata dos direitos individuais, de livre manifestação do pensamento e de liberdade religiosa.
Há alguns anos fizemos uma pesquisa na porta de uma Igreja em Copacabana, onde colocamos duas urnas. Numa delas, a gente perguntava: você é contra ou a favor do aborto? Lógico que 99% das mulheres que entravam na Igreja eram contra. Na outra urna a pergunta era: você acha que uma mulher que faz aborto deve ser presa? E as mulheres disseram que não. Uma coisa é você concordar ou não, a outra é achar que o Estado deve punir um comportamento com o qual você não concorda. Existem vários comportamentos que podem ter uma rejeição social muito alta, com os quais você pode não aprovar, como o adultério, o incesto, a prostituição e a homossexualidade, mas que não são mais criminalizados.
No caso do aborto, muitas vezes se você perguntar a uma mulher que já fez aborto se ela é contra ou a favor da prática, é possível que ela seja contra. E por que ela é contra? Porque certamente ela vai lembrar de uma experiência mal sucedida onde ela não foi bem atendida, passou por situações de constrangimento e medo. A experiência para ela foi negativa não porque ela deixou de ter o filho, mas devido a todas as circunstâncias constrangedoras que ela passou pelo fato de o aborto ser crime. Mas se você perguntar pra ela se quem faz aborto deve ser presa, ela vai dizer que não. Grande parte dos casos de denúncias contra aborto sequer vão a julgamento, e quando vão os índices de absolvição são altos. Então, o que se vê é uma não punição de fato. Até mesmo muitos religiosos, principalmente aqueles que trabalham junto a mulheres pobres, vão se manifestar com imensa compreensão em relação à mulher que aborta. Eles jamais vão pedir que essas mulheres sejam punidas.
Há ainda alguma estratégia que não foi usada?
A gente precisa levar essa discussão não apenas para o Estado, mas para a sociedade, deixar claro que um projeto de descriminalização do aborto não significa que as mulheres serão obrigadas a fazer o aborto. Faltam alianças. A questão do aborto não é apenas um problema das mulheres, é uma questão de ser coerente com o que está escrito no artigo 5º, que assegura o direito individual. Se começarmos a abrir exceções a este artigo, estaremos colocando em risco todo os outros direitos, como o da religião, à organização sindical, à orientação sexual. A luta pelo direito ao aborto é uma luta de quem defende o respeito pelos direitos individuais.
Como entra a discussão sobre o direito ao aborto, dentro do Comitê da OEA, o qual a senhora preside, criado para fiscalizar a situação da violência contra a mulher no continente?
A violência sexual não é somente aquela praticada pelo estranho na rua, mas também pode ser praticada pelo marido, o qual, ao obrigar a mulher a uma relação sexual forçada, está cometendo um estupro. E essa mulher que foi estuprada pelo marido e engravidou, tem direito ao aborto previsto no código penal desde 1940. Os agentes da violência podem ser da família, da comunidade ou o próprio Estado.
Como o direito ao aborto pode ser defendido na perspectiva de violência contra a mulher? Criminalizar a prática do aborto é uma forma de violência do Estado?
Há pouco tempo uma mulher em processo de abortamento foi violentamente agredida por médicas num hospital público do Rio de Janeiro. Naquele momento, elas representavam o Estado. Não cabia a elas investigar ou julgar se essa mulher tinha ou não provocado o aborto, mas sim atender a uma paciente que chegou sangrando. Ela só foi solta por ação do movimento de mulheres.