CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

O Supremo e a Igreja

*Luís Corrêa Lima


De agora em diante, a união homoafetiva é família no direito brasileiro. Esta é a decisão do Supremo Tribunal Federal, desde que sejam atendidos os requisitos exigidos para a formação da união estável entre homem e mulher. Os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis, estendem-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. Isto repercute na vida das pessoas e das instituições, encorajando a visibilização da condição homossexual.

Dentre os que se manifestaram contra esta decisão, está a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). A entidade considera a família monogâmica, fundada na união entre o homem e a mulher, como um princípio fundamental de direito natural. Equiparar as uniões entre pessoas do mesmo sexo à família, descaracterizaria a sua identidade e ameaçaria a estabilidade da mesma.

Pode parecer que o pronunciamento da CNBB apenas repete a histórica oposição da Igreja Católica ao movimento LGBT. Ao contrário do senso comum, existem elementos de convergência entre a decisão do Supremo e a doutrina da Igreja. Um documento do Vaticano, de 2003, trata do reconhecimento civil da união entre pessoas do mesmo sexo. Ele se opõe à equiparação desta forma de união àquela entre homem e mulher, bem como a mudanças no direito familiar neste sentido. No entanto, o Vaticano afirma que se podem reconhecer direitos decorrentes da convivência homossexual. Alguns bispos brasileiros se manifestaram individualmente a favor destes direitos, mas frisando que não se deve considerar a convivência homoafetiva como família.

Este passo é muito importante. Se não houver nenhum reconhecimento social ou proteção legal às uniões homoafetivas, a homofobia presente na sociedade vai pressionar os gays a contraírem uniões héteros, para fugirem de um preconceito que é muito forte. Isto já acontece há séculos, traz muito sofrimento e precisa parar. O sacramento do matrimônio nestas circunstâncias é inválido. É preciso que os fiéis saibam disto. O casamento tradicional não é, de modo algum, solução para a pessoa homossexual.

Convém recordar que a família tem mudado bastante ao longo da história. Na Antiguidade romana, ela era o conjunto das propriedades de alguém, incluindo escravos e parentes. Família vem de ‘famulus’, que significa escravo doméstico. No mundo bíblico, a mulher era propriedade do marido ou do pai, assim como a casa, o escravo e o jumento (Êxodo, 20). O casamento era um acordo entre chefes de família, prescindindo do consentimento dos cônjuges. O homem podia ter mais de uma esposa, e a função dela era gerar descendentes para a família do marido. Caso a esposa ficasse viúva e sem filhos, ela teria que se casar com o cunhado para cumprir esta função.

Por volta do século XII, a cristandade ocidental introduziu o consentimento conjugal como condição necessária para a validade do casamento. No Brasil colonial, a idade mínima para o casamento era de 12 anos para as mulheres e de 14 anos para os homens. Isto hoje é inadmissível. O modelo patriarcal de família declinou em todo o mundo no século passado. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, estabeleceu o livre consentimento dos cônjuges e também a igualdade de seus direitos no casamento. A Igreja Católica, desde o Concílio Vaticano II, louva as nações que promovem a igualdade de direitos do homem e da mulher na sociedade. A CNBB promoveu em 1990 uma Campanha da Fraternidade voltada para a igualdade de gênero, com o lema “mulher e homem: imagem de Deus”.

No longo prazo, portanto, é muito grande a mudança na configuração familiar e no papel de seus membros. Este processo continua. Na sociedade civil está se ressignificando o conceito de família, de modo a incluir as uniões homoafetivas. O casamento religioso, por sua vez, continua fortemente enraizado na heteronormatividade da tradição judaico-cristã. Mas em países escandinavos e em regiões onde as uniões homoafetivas são comuns, Igrejas como a Anglicana e a Luterana realizam bênçãos para estes conviventes, embora distinguindo estas uniões do casamento. As mudanças na tradição não são impossíveis de acontecer, trazendo novas compreensões e a aplicações da chamada lei natural. Mas é difícil saber o que vai permanecer, o que vai mudar e quanto tempo vai levar.

Uma nova questão vai surgir para as igrejas no Brasil: lidar com as crianças criadas por casais homoafetivos. O número delas deve aumentar devido ao crescente reconhecimento destas uniões. Os bispos católicos norte-americanos se depararam com esta questão em 2006. Eles se posicionaram contra a homoparentalidade. Mas aceitam que as crianças sejam batizadas desde que possam ser educadas na fé da Igreja. Convém considerar sempre o que for melhor para a criança.

*Luís Corrêa Lima é padre jesuíta, historiador e professor da PUC-Rio.