CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

A reinvenção do corpo

A primeira vez que a palavra “transexual” apareceu na literatura médica foi em 1949, sob o signo de uma doença mental. Até hoje a transexualidade figura como transtorno mental na classificação de doenças da Organização Mundial de Saúde (CID-10) e na Psiquiatria (DSM). Para a socióloga Berenice Bento, pesquisadora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), não se trata de uma patologia mas de uma experiência de conflito com as normas de gênero. Em sua tese de doutorado, “A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual”, defendida na UnB em 2003 e que será publicada pelo CLAM e editora Garamond em março de 2006, ela analisa a experiência transexual a partir de uma perspectiva teórica divergente.



“Tento encontrar nas relações sociais os mecanismos mediante aos quais a sociedade constrói os corpos-homem e corpos-mulher”, diz a pesquisadora, cujo artigo “Da transexualidade oficial às transexualidades” integra o livro Sexualidade e Saberes: Convenções e Fronteiras, publicado em 2004 pelo CLAM e editora Garamond, resultante de um seminário organizado em parceria com o Núcleo de Estudos de Gênero PAGU (Universidade Estadual de Campinas) em 2003.



No âmbito dos direitos humanos, embora defenda o direito à cirurgia de mudança de sexo, Berenice acha importante levar em conta outras reivindicações dos/as transexuais, tais como uma política de inclusão no mercado de trabalho, um modelo educacional não transfóbico e a possibilidade da alteração de documentos de identidade sem a necessidade da transgenitalização. “Os sofrimentos derivados da desconformidade entre o corpo-sexuado e a identidade de gênero são enormes e os constrangimentos a que tais pessoas são submetidas, inimagináveis”, diz ela.



Nesta entrevista, a socióloga fala dessas e outras questões em torno do tema.





Em sua abordagem, a sra. propõe a necessidade de se interpretar a identidade de gênero, a sexualidade, a subjetividade e o corpo como modalidades relativamente independentes. A sra. pode explicar um pouco mais isto?




As normas de gênero definem que o homem/mulher de verdade tem pênis/vagina, deverão comportar-se ativamente/passivamente e será a heterossexualidade que dará sentido às diferenças anatômicas. Há uma amarração, uma costura, ditada pelas normas, no sentido de que o corpo reflete o sexo, e o gênero só pode ser entendido, só adquire vida, quando referido a essa relação. As performatividades de gênero que se articulam fora dessa amarração são postas à margem, pois são analisadas como identidades “transtornadas”.



A experiência transexual põe como palco de disputa um outro campo, não mais a sexualidade e o gênero, mas o próprio corpo construído como naturalmente dimórfico. O dispositivo da transexualidade nos faz crer que as pessoas que vivem os conflitos entre corpo, gênero e sexualidade reivindicam a cirurgia de transgenitalização para terem relações sexuais normais, com os órgãos sexuais apropriados. Penso que não é a busca da heterossexualidade que os/as motivam à demandarem as cirurgias. O raciocínio lógico, norteado pelas normas de gênero, é mais ou menos assim: “Ora, se todo mulher/homem tem vagina/pênis e se todo mulher/homem é heterossexual, logo um/a transexual de verdade quer uma vagina/pênis para ser heterossexual”. Isso significa que todo transexual deseja a cirurgia? Que não existe homossexualidade entre os/as transexuais? Não é verdade. São afirmações falsas. Um raciocínio retilíneo como esse desfaz-se diante da pluralidade de articulações identitárias internas à experiência transexual. Quando afirmo: “sou mulher”, não revelei nada sobre minha sexualidade, não é verdade? Outra afirmação: “sou mulher e sou lésbica”. Nesse caso, a minha sexualidade está em descontinuidade com as normas de gênero. Agora: “Sou uma transexual”. Se eu parto do pressuposto teórico de que os sujeitos estruturam suas posições no mundo de formas múltiplas, não posso derivar dessa informação que ser transexual é igual a ser heterossexual, tampouco que implique o desejo de realizar a cirurgia. O sinal de igualdade me dá poucas pistas, daí a necessidade de pensar as modalidades constitutivas das posições dos sujeitos independente de referentes dados e naturalizados.





Em sua tese, são apresentadas as abordagens de Stoller e a de Benjamim, que propõem teorias para explicar a transexualidade e apontam os “tratamentos” adequados. Benjamim aponta a cirurgia como única alternativa terapêutica possível enquanto profissionais da Psiquiatria – área de Stoller – defendem o tratamento psicanalítico da transexualidade. Que outro olhar ou leitura, fora dos marcos patologizantes e normatizadores do campo médico, podem ser propostos para interpretar as experiências dos transexuais e dos intersexos?




Na minha tese analiso a experiência transexual a partir de uma perspectiva teórica divergente a essas: tento encontrar nas relações sociais os mecanismos mediante os quais a sociedade constrói os corpos-homem e os corpos-mulher. Vejamos: antes do corpo ver a luz da vida, há um conjunto de expectativas e suposições sobre os comportamentos que irá desempenhar. E como são estruturadas essas expectativas? A partir da informação contida na genitália. As energias do futuro papai e mamãe são mobilizadas para saber qual o sexo da criança. Se menina: muito rosa, bonecas, vestidinhos, roupinha delicadas; se menino: azul, bola, revólveres, carros.



A heterossexualidade funcionaria como uma matriz que confere sentido às diferenças anatômicas. Ora, o problema é que há corpos que escapam, que fogem do controle social total. A experiência transexual é povoada por corpos que escapam, que não conseguem encontrar sentido existencial nas cartografias disponibilizadas e aceitas socialmente. Conforme afirmei, quando a criança nasce já encontra um mundo genereficado. Já nascemos todos cirurgiados.



Quando um pessoa afirma “quero reconstruir meu corpo, quero uma cirurgia de transgenitalização”, está afirmando implicitamente que a primeira “cirurgia”, a que definiu o gênero a partir da genitália, não foi exitosa. Dessa forma, quando localizo nas instituições sociais e nas relações sociais delas decorrentes a explicação para a gênese da experiência transexual, inverto a lógica: são as normas de gênero que possibilitam a emergência de conflitos identitários com essas mesmas normas. Esta abordagem está ancorada em estudos das Ciências Sociais que interpretam as identidades e sexualidades fora dos marcos patologizantes.





No Brasil há uma exigência para as pessoas que desejam fazer a transgenitalização: submeter-se a um período de terapia de dois anos, antes da realização da cirurgia. Os terapeutas esperam que este tempo possa demover o candidato da idéia e/ou necessidade da cirurgia. Qual o seu ponto de vista em relação a uma pessoa que queira mudar de sexo? Este tempo realmente é necessário?




Defendo a absoluta legitimidade da reivindicação do sujeito que quer reconstruir seu corpo. Os sofrimentos derivados da desconformidade entre o corpo-sexuado e a identidade de gênero são enormes e os constrangimentos a que os sujeitos são submetidos, inimagináveis. De forma geral, as pessoas transexuais começam o processo transexualizador antes de fazer parte de um programa em um hospital e já desenvolvem características corporais e performáticas do gênero identificado. Agora, quanto tempo a pessoa transexual deve fazer terapia para que possa fazer a cirurgia? Quando tempo deve freqüentar o hospital? A pergunta deve ser outra: Por quê fazer terapia? As pessoas transexuais, de forma geral, chegam aos hospitais com a certeza de que querem fazer a cirurgia. Mas essa certeza é posta em dúvida o tempo todo pela equipe médica. Ou seja, a dúvida não está com o demandante, mas com a equipe que precisa rastrear indicadores que fundamentem um parecer final. Quais os indicadores? Aqueles disponibilizados socialmente para se classificar alguém como mulher ou homem. Além das questões referentes à identidade de gênero, far-se-á uma observação minuciosa e silenciosa da forma como os/as demandantes se vestem, caminham, cruzam as pernas. Será que o tempo de terapia é realmente necessário? Qualquer estudante de psicologia sabe que o sucesso de qualquer terapia está diretamente ligado ao desejo do paciente de dar sentido a regiões nebulosas de sua vida. Ora, como impor uma terapia?





E quanto à necessidade imposta pelo Estado de, primeiro, ser diagnosticado que o candidato à cirurgia sofre de um transtorno mental, para então, poder realizá-la, numa forma de justificar o procedimento?




Devemos ter cuidado com os argumentos para justificar as cirurgias e o pagamento da seguridade social para o processo transexualizador. Já ouvi muitas pessoas transexuais argumentarem que para o Estado pagar as cirurgias deve-se continuar a considerar a transexualidade como uma doença, um transtorno. Não concordo. É uma tática perigosa. Penso a transexualidade como experiência de conflito com as normas de gênero. Para muitos transexuais a cirurgia de transgenitalização é a possibilidade concreta de ascenderem à condição humana, e o Estado deve custear o processo transexualizador. Não vejo nenhuma contradição em seguirmos lutando pela despatologização (consequentemente, a retirada da transexualidade do código internacional de doenças) e, ao mesmo tempo, lutarmos pelos direitos humanos das pessoas transexuais. É aí onde localizo a questão das cirurgias, no âmbito dos direitos humanos, mas não me limito a ela. Há um conjunto de reivindicações: políticas de inclusão no mercado de trabalho, um modelo educacional não transfóbico, o direito a mudarem os documentos de identidade sem terem realizado a cirurgia. Esse último ponto é essencial. Da mesmo forma que para muitas pessoas transexuais a cirurgia é fundamental, para outras, as mudanças do nome e do sexo nos documentos são prioritárias.





No âmbito dos direitos humanos, qual a importância dessas reivindicações?




Significa primeiramente apontar a diversidade dos gêneros e deslocar o gênero de qualquer referência biológica; reconhecer-lhes a condição de sujeitos, com capacidade de elaborar significados para seus sofrimentos, além de serem sujeitos de direitos, demandantes de políticas públicas inclusivas. Há um profundo e incômodo silêncio nas sociedades latino-americanas sobre os direitos humanos dos transgêneros. Devemos desconfiar desse silêncio. Ao mesmo tempo recebemos notícias do elevado nível de violência contra os transgêneros. Violência freqüentemente institucionalizada: policiais matam, mutilam, prendem. Quando realizam tais atos, estão respaldados pela legitimidade que as normas de gênero conferem a seus atos, normas que só atribuem humanidade aos corpos coerentes. Toda vez que uma travesti é agredida, um gay é insultado, um/a transexual humilhado/a, estamos diante da lei de gênero operando seu poder normatizador.