CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Anticoncepção de emergência

A Resolução n.º 1.811 do Conselho Federal de Medicina, publicada em 14 de dezembro de 2006, estabelece normas éticas para a utilização, pelos médicos, da anticoncepção de emergência. Segundo a mesma, o CFM considera “que o direito reprodutivo funda-se nos princípios da dignidade da pessoa humana e propicia o exercício da paternidade responsável e que compete ao Estado propiciar recursos educacionais, científicos e materiais para o exercício desse direito; (…) que no Brasil há um número significante de mulheres expostas à gravidez indesejada, seja pelo não uso ou uso inadequado de métodos anticoncepcionais e que a anticoncepção de emergência poderá contribuir para a diminuição da gravidez indesejada e do aborto provocado”.

Para a socióloga Dulce Vasconcelos Xavier, da organização Católicas pelo Direito de Decidir (CDD), a resolução do CFM é importante, mas para que seja respeitada, será preciso elucidar equívocos, por parte de alguns profissionais de saúde, em torno do uso da contracepção de emergência. “Alguns profissionais ainda acreditam que a contracepção de emergência seja abortiva, não levando em conta que seu acesso é necessário quando uma pessoa tem consciência que teve uma relação sem proteção – ou porque não tomou a pílula ou porque o preservativo estourou”, afirma ela, nesta entrevista, onde também avalia a relação do Estado e da Igreja e a posição dos brasileiros a respeito do assunto, tendo como base os resultados da pesquisa de opinião conduzida pelo CDD em 2005.

Segundo a pesquisa, 97% dos católicos entrevistados apóiam o uso do preservativo e sua distribuição pelo governo, 86% concordam com o planejamento familiar através do uso de métodos anticoncepcionais. Em relação à pílula do dia seguinte 71% mostram-se favoráveis ao uso em caso de relação desprotegida e 90% em caso de estupro.

Como a sra. avalia, dentro do atual contexto brasileiro, a resolução do Conselho Federal de Medicina que estabelece normas éticas para a utilização, pelos médicos, da anticoncepção de emergência?

Foi uma decisão importante porque havia uma resistência em utilizar a contracepção de emergência até mesmo nos serviços que atendem uma mulher vitima de violência sexual. Alguns profissionais ainda acreditam que a contracepção de emergência seja abortiva, não levando em conta que seu acesso é necessário quando uma pessoa tem consciência que teve uma relação sem proteção – ou porque não tomou a pílula ou porque o preservativo estourou. O uso do método de emergência já estava previsto há muito tempo, embora houvesse resistências mesmo para essas situações. Em algumas cidades, como São José dos Campos, as Câmaras municipais faziam leis para proibir a distribuição nesses municípios, a despeito da portaria do Ministério da Saúde, de 2005, para distribuição da contracepção de emergência em todas as unidades públicas de saúde. Felizmente o Ministério Público entrou com uma ação e garantiu essa distribuição. Por isso, quando o Conselho Federal de Medicina publica uma resolução deste tipo, ela se torna importante para a classe médica usá-la como subsídio para compreender a contracepção de emergência como uma maneira de evitar uma gravidez indesejada. Ela não pode ser utilizada como método anticoncepcional de forma sistemática. Mesmo porque, se for utilizada com freqüência, ela vai perdendo sua eficácia.

Preferimos usar o termo “contracepção de emergência” e não “pílula do dia seguinte”, e enfatizamos a importância de um trabalho educativo em paralelo para que as pessoas, além de não compreenderem este método como uma opção anticoncepcional, possam conhecer outros formas de evitar uma gravidez e fazer suas opções, não perdendo de vista que o uso do preservativo é indispensável, independente de laqueadura de trompas ou outros métodos, por conta das doenças sexualmente transmissíveis. As pessoas se preocupam em controlar a fertilidade, mas não podemos deixar de falar na Aids e nas outras DSTs.

Esta resolução pode contribuir favoravelmente para a problemática dos altos índices de aborto no país?

Com certeza. A discussão sobre planejamento familiar e sobre contracepção de emergência deve ser promovida no contexto das práticas preventivas que acabam contribuindo para a diminuição do numero de abortos clandestinos no país. Quando falamos em legalização, é preciso enfatizar que precisamos de uma política séria de educação. Ninguém defende o aborto como método anticoncepcional. O que o movimento de mulheres defende é que o aborto saia da clandestinidade e passe a ser visto como um problema de saúde publica. É preciso salientar que o aborto não é desejável. Estamos pensando em tratar uma situação que já existe e não promovê-la. A Igreja, querendo ou não, a legislação, permitindo ou não, as mulheres estão se submetendo a abortos, por vezes, inseguros, por falta de acesso a métodos contraceptivos e a políticas educativas.

A despeito da lei de planejamento familiar, de 1996, o acesso aos métodos anticoncepcionais não está ao alcance de todas as pessoas. Muitas mulheres ainda têm que comprar pílulas, porque na unidade de saúde não é tão fácil conseguir. Os médicos precisam estar convencidos de que isso é um direito da mulher. Já ouvi médicos dizerem que não prescrevem a contracepção de emergência porque acham que é um método abortivo.

O discernimento das pessoas em decidir sobre sua saúde tem aumentado, inclusive entre os católicos?

Em relação às questões ligadas aos direitos sexuais e reprodutivos, a prática dos fiéis é completamente distante das recomendações da hierarquia católica. Em uma pesquisa que nós promovemos em 2005 – Pesquisa de opinião dos católicos brasileiros sobre direitos reprodutivos, relação Igreja e Estado e temas relacionados – 97% dos católicos entrevistados responderam que o preservativo deve ser usado e que o governo deve distribuí-lo, enquanto 86% concordam com o planejamento familiar através do uso de métodos anticoncepcionais. Em relação ao contraceptivo de emergência, 71% mostraram-se favoráveis ao uso em caso de relação desprotegida. No caso de estupro, 90% concordam com seu uso. Outro dado significativo é que 83% dos entrevistados apóiam que a Igreja Católica permita aos católicos o uso de métodos anticoncepcionais

No que diz respeito à relação Estado e Igreja, a maioria absoluta acha que o Estado e o Legislativo devem tomar suas decisões considerando a diversidade de opiniões no país. A grande maioria se manifestou a favor do Estado laico – 86% dos entrevistados.

Esta pesquisa foi feita no Brasil, México, Bolívia e Colômbia. Como a sra. avalia a influência da Igreja Católica nos países latino-americanos em temas como a descriminalização do aborto?

A Igreja tem dificuldade em reconhecer a contribuição da ciência. Ela está fora do seu lugar. É claro que a Igreja tem o direito, como instituição, de expressar seu pensamento, mas não tem o direito de se impor a outras organizações que tenham contribuição especifica sobre questões médicas, por exemplo. A Igreja se coloca acima da sociedade e vai dizer o que é bom e o que é ruim. A conseqüência disso é que ela entra em áreas de atuação de outras organizações que têm reconhecida capacidade para fazer isso. Quando quase 100% dos católicos afirmam que a camisinha é um instrumento eficaz para evitar uma doença fatal como a Aids, endossando a posição da Organização Mundial de Saúde, eles estão dizendo que a OMS tem capacidade de cuidar da saúde das populações e o Vaticano não tem que se pronunciar sobre isso, mesmo porque nem os católicos estão ouvindo mais. Aliás, a Igreja Católica é a única religião que tem status de Estrado na Organização das Nações Unidas. Por que o Vaticano tem esse status e as outras religiões não? Na verdade, nenhuma delas deveria ter esse status, mas o fato de o Vaticano estar lá deveria ser questionado.

A despeito da forte influência da Igreja Católica e da proximidade da visita do Papa ao Brasil, os direitos reprodutivos estão em pauta no Brasil. O presidente Lula acaba de afirmar a necessidade do uso do preservativo, e o Ministro da Saúde recém-empossado aponta o planejamento familiar como uma prioridade de sua gestão. Os governadores de SP e do RJ também estão enfatizando temas como a distribuição da pílula do dia seguinte e a gravidez na adolescência. Esta resolução do CFM chega em um momento favorável?

As mulheres que fazem aborto e morrem são as mulheres pobres. Então, garantir o acesso a métodos anticoncepcionais na saúde publica é essencial. Toda a política de prevenção é bem-vinda porque, como disse anteriormente, ter políticas públicas de planejamento familiar não significa que a população tenha acesso aos métodos.