Em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo (ed. 19/8/2007) – intitulado ”A igualdade é colorida” – o ministro Marco Aurélio Mello, do Tribunal Superior Eleitoral, apontou que, em se tratando de homofobia, o Brasil é o país que ocupa o primeiro lugar, com mais de cem homicídios anuais cujas vítimas foram assassinadas devido à sua orientação sexual. Para ele, tal estatística é ignorada porque a sociedade brasileira não reconhece as relações homoafetivas como geradoras de direito. O ministro ressaltou ainda os avanços dos poderes judiciários estaduais no reconhecimento dos direitos de família para casais homossexuais, como o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que recentemente reconheceu a relação afetiva de um casal de homens gays, assegurando o direito de um deles aos bens do parceiro, falecido após 47 anos de vida em comum.
De fato, um intenso debate em torno da conjugalidade e da homoparentalidade tem sido produzido no Brasil, permitindo a reflexão sobre os princípios que caracterizam a família e também sobre a aplicação da categoria jurídica “casamento” na regulamentação das relações entre pessoas do mesmo sexo. “A demanda pelo reconhecimento destas uniões é legítima”, afirma o juiz federal Roger Raupp Rios, do Tribunal Federal do Rio Grande do Sul, um dos organizadores do livro “Em defesa dos Direitos Sexuais” (Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007), fruto de dois anos de estudo e pesquisas coletivas de um grupo de professores e operadores do Direito, entre eles o também juiz do TJRS, Roberto Arriada Lorea e Samantha Buglione, professora de Teoria do Direito e Bioética, doutoranda em Ciências Humanas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O livro discute fundamentos filosóficos (liberdade e igualdade) e temas importantes como homofobia e laicidade e suas repercussões em situações emblemáticas, como a transexualidade.
“Trata-se de uma reflexão a partir daquilo que já existe (decisões judiciais e alguma discussão doutrinária) no mundo jurídico. Nosso esforço foi sistematizar e fundamentar, no âmbito do direito, a noção de direitos sexuais.”, afirma Roger, que participou, nos dias 5 e 6 de setembro, do Seminário Homofobia, Identidades e Cidadania LGBTTT, realizado na UFSC. O juiz integrou a mesa que discutiu o Projeto de Lei da Parceria Civil e o tema da conjugalidade homoerótica, e também é autor do artigo “Uniões homossexuais: adaptar-se ao direito de família ou transforma-lo? Por uma nova modalidade de comunidade familiar”, que compõe a coletânea Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis (CLAM/Editora Garamond), lançada durante o Seminário. Na entrevista a seguir, ele analisa a questão e também fala sobre o Projeto de Lei que propõe a criminalização da homofobia no país.
Como o sr. analisa as propostas do Projeto de Lei de Parceria Civil no Brasil?
A reivindicação política e jurídica pelo combate à discriminação alcança várias frentes. Duas destas, com conseqüências práticas importantes na vida dos indivíduos e na organização social mais ampla, dizem respeito à configuração familiar, seja conjugal, seja parental. Neste contexto, a demanda pelo reconhecimento destas uniões é legítima. O que não se pode perder de vista, no entanto, é o conteúdo associado aos modelos propostos: que este reconhecimento seja espaço de liberdade e não-discriminação diante dos modelos tradicionais, de cunho institucional e fusional, de família. Creio que as propostas de parceria civil devem evitar a simples adaptação aos modelos e às lógicas conjugais existentes, fortemente heterossexistas. Devem pugnar, isto sim, por horizontes transformadores do direito de família. Na prática, isto significa não só acabar com a exclusão de homossexuais das instituições jurídicas existentes, como também propor a possibilidade de novos arranjos interpessoais. Neste sentido, é importantíssimo imaginar novas categorias jurídicas familiares, modelos abertos para a definição dos arranjos sexuais e existenciais, sem se prender à maneira ditada pela heterossexualidade compulsória.
Ao lado do Projeto de Lei da Parceria Civil, o PL 122, que propõe a criminalização da homofobia no país, tornou-se a grande bandeira do movimento GLBT brasileiro na atualidade. Como o sr avalia tal projeto?
Não se pode perder de vista que o assassinato e o espancamento de homossexuais, para tomar dois exemplos extremos, em virtude da homossexualidade, é algo mais que um “simples” assassinato, onde inexiste ódio em face da manifestação da diversidade. Deste modo, entendo que a criminalização é justa e necessária, pois decorrente do levar a sério as premissas da democracia e do pluralismo, inclusive sexual, na sociedade brasileira. A inclusão da orientação sexual e da identidade de gênero dentre as situações cuja discriminação é sancionada penalmente, portanto, parece-me correta e adequada. Não se trata, por óbvio, de incitar uma mentalidade punitiva, nem de imaginar que o direito penal seja uma panacéia para todos os problemas. Mas sim de atentar para a gravidade de violações bárbaras de direitos humanos e de prover a sociedade de meios para combatê-la, com a mesma dignidade e intensidade que outras discriminações, igualmente inadmissíveis, como ocorre com origem social ou raça.