Dias antes da votação do projeto de lei que legaliza o aborto na Cidade do México – aprovado na semana passada por 46 votos a favor e 19 contra – o Papa Bento XVI havia enviado uma carta aberta aos bispos mexicanos apelando para que impedissem, a qualquer custo, a reforma legal. A carta foi interpretada por parlamentares de vários partidos como grave desrespeito ao Artigo 113 da Constituição Mexicana, que define a separação entre Estado e Igreja, e a Secretaria de Governo emitiu uma nota formal pedindo maior comedimento à hierarquia católica. No Brasil, o posicionamento da Igreja frente às decisões do Estado não tem sido diferente.
“No caso brasileiro, a Igreja Católica, após ter sido a religião oficial durante todo o período da monarquia, obviamente tem dificuldade em se afastar do poder e dos privilégios a que estava acostumada”, avalia o juiz de Direito Roberto Arriada Lorea, do Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul. Antropólogo vinculado à Rede Ibero-americana pelas Liberdades Laicas, Lorea ressalta que os privilégios concedidos à Igreja Católica no país demonstram que o Estado laico precisa ser defendido, para que o Brasil não seja um Estado que se curve aos interesses de determinados grupos religiosos. “Em relação às políticas públicas em educação e saúde, por exemplo, a influência religiosa nas decisões de Estado pode limitar as alternativas, impondo um pensamento único, o que é prejudicial à nação. Pesquisas com células-tronco, por exemplo, não podem ser restringidas por força de uma determinada convicção religiosa”.
Filiado à Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS), Lorea é o coordenador-geral do Seminário Internacional Liberdades Laicas, que acontece em Porto Alegre, no Rio de Janeiro e em São Paulo, nos dia 04, 07 e 08 de maio, respectivamente. O seminário vai reunir magistrados, pesquisadores e ativistas para debater temas como políticas públicas e liberdades laicas, o espaço religioso e o poder judiciário dentro do Estado laico e as diferenças entre laicidade e laicismo. O evento é uma realização da Ajuris, da Rede Ibero-americana pelas Liberdades Laicas, do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS/UFRGS) e de El Colegio Mexiquense, e conta com o apoio do CLAM.
“Ao propormos o debate não estamos nos colocando contrariamente à religiosidade. Nosso foco é a postura imparcial dos Estados em relação aos mais diversos agrupamentos religiosos. Nos Estados laicos o tratamento deve ser igualitário e não deve haver privilégios para esta ou aquela Igreja. Isto não quer dizer que o Estado deva fazer concessões equivalentes a todas, o que implicaria em um Estado confessional (ainda que plural), pois não é papel do Estado promover a religiosidade”, observa o juiz, nesta entrevista.
Com tanta interferência da Igreja Católica na política (como no debate pela descriminalização do aborto) e na vida pública (a disposição de crucifixos em locais públicos é um exemplo) podemos afirmar que o processo de secularização está plenamente estabelecido no Brasil?.
A separação entre as Igrejas e o Estado no Brasil é assegurada na Constituição. Contudo, não podemos esquecer que tivemos um período de quatro séculos de ditadura católica antes do advento da República. Então, em termos históricos, a democracia religiosa é ainda recente no país.
Assim, como a noção de democracia é passível de uma visão crítica, e no Brasil a desigualdade social e a concentração da riqueza autorizam questionar o quão democrático é o país, do mesmo modo, os privilégios concedidos à Igreja Católica no Brasil demonstram que o Estado laico precisa ser defendido, para que não tenhamos um Estado que se curve aos interesses de determinados grupos religiosos.
Como o senhor analisa a interferência da Igreja no debate sobre o aborto no país? Que poder/legitimidade tem a Igreja para intervir sobre decisões que dizem respeito à autonomia do indivíduo?
A interferência das Igrejas nas políticas públicas de um país acontece na medida em que é admitida pelos agentes políticos do Estado (governantes, legisladores, magistrados). No caso brasileiro, a Igreja Católica, após ter sido a religião oficial durante todo o período da monarquia, obviamente tem dificuldade em se afastar do poder e dos privilégios a que estava acostumada.
Em relação à influência religiosa na esfera pública, o projeto de lei de descriminalização do aborto encaminhado pela Comissão Tripartite é um bom exemplo. As primeiras notícias de que havia um enorme esquema de corrupção nos altos escalões do governo surgiram concomitantemente com a finalização dos trabalhos da Comissão Tripartite, criada pelo governo federal para estudar e enfrentar a questão do aborto no Brasil. Havia a necessidade de o governo fazer alguma coisa em relação ao tema do aborto, em face de compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro, especialmente nas Conferências das Nações Unidas, do Cairo em 1994, e de Pequim em 1995.
Finalizados os trabalhos, a Comissão se posicionou por encaminhar um projeto de descriminalização do aborto no Brasil. Caberia ao presidente Lula acolher o resultado dos trabalhos e tomar à frente nesse processo, pois a Comissão fora criada pelo próprio governo, com representantes de vários segmentos da sociedade, que optaram por tentar solucionar essa questão de saúde pública que assola o país.
Todavia, acuado diante das notícias de corrupção no seu governo, o presidente Lula negociou o apoio da Igreja Católica (CNBB) ao seu mandato, oferecendo em troca a não remessa ao Congresso Nacional do projeto de descriminalização do aborto. Chegou a escrever uma carta à CNBB, afirmando que não faria nada que fosse contrário à fé cristã que recebeu de sua mãe, esquecendo-se de que não foi eleito para governar para católicos ou cristãos, mas sim para todos os cidadãos brasileiros, independentemente de suas crenças. O projeto acabou sendo encaminhado, mas, sem o apoio do presidente da República, ficou vulnerável ao ataque de grupos religiosos fundamentalistas e teve sua tramitação prejudicada, apesar dos esforços da deputada Jandira Feghalli e de outras lideranças comprometidas com a defesa dos direitos humanos.
Recentemente no Rio Grande do Sul tivemos que enfrentar um caso dessa natureza, quando a Câmara de Vereadores de uma pequena cidade (Entre-Ijuís) aprovou uma lei impondo a leitura da Bíblia nas escolas municipais. Tratava-se de impor uma determinada convicção religiosa, violando-se a liberdade dessas crianças. Imagine você, uma criança cuja família professa uma determinada crença religiosa ou tem a convicção de que não existem divindades, ser obrigada a ler um o livro sagrado de outra religião na sala de aula. É uma prática fundamentalista que avilta a cidadania. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por unanimidade, declarou esta lei inconstitucional.
Recentemente o senhor criticou publicamente a disposição de símbolos religiosos em locais públicos. O que esses símbolos representam em locais como os tribunais e escolas?
Vivemos em um Estado laico, que sucede um longo período de monarquia católica. A presença de símbolos religiosos nos prédios públicos, como escolas e tribunais, é resquício daquele período. Aos poucos vamos adquirindo a consciência de que esses símbolos religiosos devem agora – no regime democrático – migrar para os museus, pois fazem parte de nosso passado, do nosso patrimônio histórico. Sua manutenção e/ou instalação em prédios novos é um anacronismo, que mantém o Estado atrelado a uma determinada Igreja, violando diversos princípios constitucionais (vide artigos 5º, inciso VI e art. 19, inciso I, da Constituição Federal). Este tipo de atitude sugere que o Estado está patrocinando uma Igreja (dentre tantas) e aderindo aos valores específicos dessa determinada crença religiosa.
Vejamos a situação de uma criança de sete ou oito anos, que chega na escola pública e é coagida a se curvar à crença religiosa de sua professora ou da diretora da escola. Exigir que uma criança de sete anos enfrente o sistema, contestando a presença de símbolos religiosos na sua escola, é pretender que essa criança fique estigmatizada, colocando-a em risco justamente por ela exercer seu direito à liberdade de consciência e de crença, assegurado na Constituição. É uma brutalidade forçar uma criança a se converter a uma determinada crença ou assumir valores de uma determinada religião. Essa violação é repetida cotidianamente no país, graças, em parte, à inércia do Ministério Público, que deveria agir de ofício, pois tem atribuição para intervir e assegurar as liberdades laicas dessas crianças e das respectivas famílias, assegurando que a escola pública seja um espaço de aprendizagem democrática e de práticas tolerantes, sem a imposição de uma única visão religiosa.
O mesmo se passa nos Tribunais, inclusive no Supremo Tribunal Federal (STF), onde se vê um crucifixo instalado acima dos símbolos da República. Que uma professora (ou diretora) de uma pequena escola do interior do Brasil não tenha a exata compreensão de que está violando as liberdades laicas de uma criança quando instala um símbolo religioso para “adornar” a escola, parece-me compreensível. É claro que isso deve mudar, mas há razões históricas que explicam (sem justificar) esse equívoco. Diferentemente, que nenhum dos 11 integrantes do STF alcance a compreensão dessa inconstitucionalidade, é assustador.
A Igreja Católica tem reiterado seu posicionamento contrário ao divórcio, assim como contratos de parceria civil de pessoas do mesmo sexo, temas relativos ao domínio do Poder Judiciário. Como o senhor analisa a influência religiosa no enfrentamento jurídico de questões ligadas à cidadania sexual?
Estou pesquisando esse tema na minha tese de doutorado em Antropologia Social (UFRGS). Tomando-se o direito de acesso ao casamento, por exemplo, você encontrará como argumento central para recusar o acesso de gays e lésbicas ao casamento, a idéia de que a finalidade do casamento é a procriação. Entretanto, na legislação secular (Constituição Federal e Código Civil) aplicável, não há qualquer exigência de fertilidade nem há referência à prole como objetivo da constituição de uma família. Ao contrário, a Constituição Federal assegura a autonomia reprodutiva como um direito.
Por outro lado, o Código Canônico, em seu cânone 1.055, prevê que o casamento tem por finalidade a procriação. Então, parece-me evidente que está havendo uma confusão, por parte de alguns operadores do Direito, entre o casamento “sacramento religioso” e o casamento “contrato civil”. Essa confusão tem efeitos na vida das pessoas cujos direitos são violados. Imaginemos se um casal ingressar como uma ação de divórcio e o juiz recusar o pedido, sob o argumento de que o casal é católico e que essa religião não autoriza o divórcio. Outro exemplo seria um casal ingressar com o pedido de divórcio e o juiz, sob o argumento de que ele é católico, alegar objeção de consciência para não deferir o pedido de divórcio.
Em relação aos contratos de parceria civil, a nova definição legal da família brasileira se harmoniza com o conceito de casamento “entre cônjuges” do Art. 1.511, do Código Civil, não apenas deixando de fazer qualquer alusão à oposição de sexos, mas explicitando que a heterossexualidade não é condição para o casamento. Trata-se de uma conquista republicana a ser festejada, cuja magnitude remete a outros episódios históricos, como a normatização do casamento religioso para pessoas não-católicas em 1863, a instituição do casamento civil em 1890, e a aprovação do divórcio em 1977.
Todavia, não é suficiente que todos sejam iguais perante a lei, é indispensável que todos sejam iguais perante o juiz, pois se houver o enfrentamento da questão sob influência religiosa homofóbica, continuaremos vivendo sob esse verdadeiro regime de apartheid sexual ainda por muito tempo.