CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Novos arranjos familiares

O livro “Homossexualidade e adoção” (Editora Garamond) apresenta o Judiciário como um campo sensível e favorável ao reconhecimento dos direitos de gays e lésbicas no Brasil em relação às concepções de família. A obra é resultado da tese intitulada Família e Homossexualidade: Velhas Questões, Novos Problemas, um dos primeiros trabalhos a abordar no país a temática da adoção de crianças por homossexuais. Segundo sua autora, a psicóloga Anna Paula Uziel, desnaturalizar a relação entre parentalidade e homossexualidade como uma relação necessária é a maior contribuição do livro, lançado no dia 23 de julho, durante a 7ª Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM), encontro que acontece em Porto Alegre até o dia 26.

A tese foi defendida em fevereiro de 2002, logo após a morte da cantora Cássia Eller, quando o pai e a parceira da artista disputaram judicialmente a guarda do seu filho biológico. Até aquele momento, nenhum casal homossexual tinha conseguido adotar uma criança em conjunto. “Isso não era sequer discutido na mídia, como é hoje. Não havia nenhum impedimento para que qualquer homossexual adotasse uma criança, até mesmo porque a homossexualidade não necessariamente apareceria, já que pessoas solteiras podem adotar”, relata Anna. Nos cinco anos que se passaram desde a defesa da tese, o tema da homoparentalidade tornou-se objeto de inúmeras pesquisas no Brasil e de debate na sociedade e na mídia. O forte interesse pelo tema na contemporaneidade pode ser observado pela intensa adesão à rede de pesquisadores “Parceria Civil, Conjugalidade e Homoparentalidade”, criada por Anna Paula Uziel, pela antropóloga Miriam Grossi (UFSC) e pelo sociólogo Luiz Mello (UFG). O trio de pesquisadores acaba de organizar a coletânea “Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis” (Editora Garamond), livro também lançado na 7ª RAM, em Porto Alegre.

Na pesquisa para sua tese, que durou quatro anos, a psicóloga entrevistou operadores do Direito – promotores, defensores públicos e juízes – e técnicos – psicólogos e assistentes sociais – em uma Vara da Justiça do Rio de Janeiro. Dos 8 processos estudados, Anna Uziel conseguiu localizar somente um requerido por uma mulher. “Quando um homem vai adotar sozinho, ele levanta suspeitas sobre homossexualidade, e a mulher não, já que é muito comum as mulheres terem filhos sozinhas. A parentalidade para as mulheres não está culturalmente atrelada à conjugalidade e para os homens ainda está. Então, ainda é estranho quando um homem quer adotar fora de uma relação conjugal, por isso se desconfiava imediatamente da homossexualidade”, relembra. Foi possível identificar esse processo, ela conta, porque as duas lésbicas participaram de todo o processo juntas, decisão e pedido que foram acolhidos pela equipe responsável pelo serviço. Surpreendentemente, a pesquisadora não observou qualquer resistência ao pedido de adoção por esses indivíduos do sexo masculino que se auto-reconheciam como gays. Tampouco o pedido da mulher sofreu resistência.

Graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Anna Paula Uziel defendeu, em 2002, sua tese de Doutorado em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), intitulada Família e Homossexualidade: Velhas Questões, Novos Problemas, sob a orientação de Mariza Corrêa. Desde 1994, é pesquisadora associada do Programa de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidade e Saúde do Instituto de Medicina Social (IMS) e, em seguida, do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ). Em 2005, tornou-se membro/sócia da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). É professora adjunta do Instituto de Psicologia da UERJ.

Por que a sra. foi pesquisar esse tema? E por que via Judiciário?

Dou aulas de Psicologia Jurídica há muito tempo, e eu queria continuar trabalhando nesse campo e também com alguma questão de sexualidade. E a questão foi: por que a homossexualidade tem que ser uma questão quando se trata de pais e mães? Isso tem sentido? Isto é que foi me instigando a pesquisar. E me interessava saber a compreensão que a justiça tinha de família.

O livro é resultado de sua pesquisa de doutorado que foi concluída em 2002. De lá para cá, houve avanços nessa questão?

Sim, o caso de Catanduva é um grande marco. Um casal de homens homossexuais conseguiu fazer com que uma menina fosse registrada no nome de um deles para, em um momento posterior, ter o registro no nome dos dois. Isso é uma mudança muito radical. Existe um boato de que existem vários casais de gays e lésbicas na fila esperando adoção, se cadastrando como requerentes aqui no Rio de Janeiro.

E que mudanças podem ser observadas na sociedade de uma maneira geral?

Não podemos dizer que não existe homofobia e que as pessoas não têm preconceitos, mas a minha impressão é que, como essa discussão começou a tomar a mídia, as pessoas pararam para se perguntar sobre o sentido de seus temores. Este é o grande avanço, porque antes isto não era nem uma questão, já estava dado que uma criança adotada por casais homossexuais seria uma criança com riscos psicológicos para seu desenvolvimento. Agora as pessoas param para refletir. Os casos que tiveram pareceres favoráveis, sobretudo os midiáticos, como foi o da cantora Cássia Eller, têm contribuído para esse quadro.

Como a homoparentalidade se encaixa dentro do quadro de demandas na luta dos homossexuais por direitos no Brasil?

O movimento GLBT é muito plural: há pessoas favoráveis e desfavoráveis ao termo conjugalidade, casamento, parceria, outros não vêem essa uma questão de primeira ordem. E em relação à parentalidade, o que observamos em pesquisa que sucedeu a tese, é que é uma questão menor, não aparece como bandeira do movimento, ainda que se identifique como umportante a garantia de direitos para aqueles que querem ser pais e mães. Na época que fiz essa pesquisa, a parentalidade era vista como um luxo. Em relação à conjugalidade, boa parte do movimento GLBT reconhece que se o projeto original da Marta Suplicy fosse aprovado seria uma vitória. No entanto, é preciso ter clareza de que o substitutivo, que já entrou em pauta tantas vezes, interdita a adoção, o que seria um retrocesso. Há uma decalagem de tempo entre o Judiciário e o Legislativo, duas instâncias completamente diferentes. O Judiciário é mais rápido, pode-se tomar decisões e, como se cria jurisprudência, não é necessário esperar uma mudança de legislação. O Legislativo “amarra” muito mais, e “amarra” tanto que pode acabar fazendo uma lei capenga. Há vantagens e riscos nos dois caminhos.

A prioridade para o movimento GLBT atualmente é a aprovação do projeto de lei que criminaliza a homofobia no país. Acabar com a discriminação primeiro para depois então lutar por outras questões – como a conjugalidade e a homoparentalidade – não seria uma boa estratégia?

O movimento fala que a raiz do problema é a discriminação, o preconceito, a homofobia. Acho que isso é um problema grave, só não sei se hierarquizar bandeiras é a melhor estratégia. O fundamental é desnaturalizar o preconceito, o que seria um enorme ganho, abriria portas para todas as conquistas. E para isso é necessário um exercício cotidiano de desmonte de argumentos comuns que ratificam o preconceito e que são repetidos sem crítica. Eu elencaria três. O primeiro, forte ainda hoje, diz respeito ao estranhamento ou até a repulsa que a homossexualidade gera, reações explicadas em função da falta de naturalidade da relação entre pessoas do mesmo sexo. Outro argumento comum é o temor em relação à continuidade da espécie. Um terceiro é a referência ao risco do abuso sexual, sobretudo se pensamos em gays. Uma das formas de se combater o preconceito e a falta de informação seria produzindo pesquisas sobre o desenvolvimento e a saúde mental das crianças filhas de gays e lésbicas. Ainda que esses estudos, feitos com maior frenqüência nos Estados Unidos, sejam de grande utilidade, sobretudo para profissionais cujo trabalho é dar um parecer sobre a condição de exercício da parentalidade de determinados sujeitos, optar por este caminho pode ser uma armadilha. Fazer esse tipo de pesquisa significa partir do pressuposto de que pode haver algo errado na homparentalidade.

A sra. diria que o Poder Judiciário é uma instância geralmente sensível a essa questão no Brasil?

Sim, o Judiciário é favorável. O que era desfavorável, e espero que tenha mudado nesses últimos anos, era o Ministério Público, que, sob pretexto de garantir a lei e os direitos das crianças e adolescentes, privava adultos e crianças de um convívio e formação de um núcleo familiar. Nos processos que analisei, quando o Ministério Público dava uma parecer negativo, eles não diziam que era porque a homossexualidade era um desvio ou uma doença, o que seria discriminatório, inconstitucional. Diziam que no Brasil não havia ainda nenhuma legislação sobre esse tipo de família. Mas esse formato de família – o pai e sua prole ou a mãe e sua prole – está previsto na Constituição desde 1988. Os processos, naquela época, eram feitos no nome de apenas uma pessoa, constituição familiar prevista em lei.