CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Sem consenso, mas democrático

No momento em que mais uma vez se aquece o debate sobre o aborto no país, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou, no dia 20 de abril, uma audiência pública para discutir o uso de embriões em pesquisas com células-tronco. A antropóloga Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB) e diretora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), integrou o grupo de 22 cientistas ouvidos pelos ministros do STF para, a princípio, ajudá-los a formular um conceito operacional de quando se dá o começo da vida, uma vez que na Constituição brasileira não existe um conceito claro a esse respeito.

“A audiência foi um marco no debate dos direitos reprodutivos no Brasil, uma vez que se questionou o que fazer com os embriões congelados, discussão que envolve a polêmica questão do início da vida. O STF viu que não podemos chegar a um consenso sobre o tema e que essa é uma questão de controvérsia religiosa. É importante que o Supremo perceba que não precisamos escolher um estatuto para o embrião para justificar as pesquisas com células-tronco ou para resolver o impasse em torno da descriminalização do aborto no país”, analisa Débora.

Esta foi a primeira vez que o STF abriu suas portas para uma audiência pública. A decisão foi tomada depois que a Lei de Biossegurança (2005), que permite as pesquisas com células-tronco embrionárias humanas, foi suspensa, dois meses após sua aprovação, por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) impetrada pelo católico Cláudio Fonteles, então procurador-geral da República. Em sua argumentação, Fonteles afirma que a vida se dá desde a fecundação e que, portanto, essas pesquisas representariam uma violação do direito à vida, previsto na Constituição.

Para Débora, o debate ocorrido no STF foi um exemplo de democracia. “As comunidades morais têm que ter espaço para defender suas posições. A fronteira entre a tentativa de impor uma posição e a interferência no debate pode ser tênue, mas é parte da democracia. Acho genuíno que o papa peça a seus bispos que atuem e interfiram no debate da descriminalização do aborto, como aconteceu na cidade do México, por exemplo. O que não pode é o Estado tomar uma decisão fundada em princípios e dogmas religiosos”.

A antropóloga acredita que se existe um conflito de princípios, ele deve ser processado com base em uma perspectiva argumentativa: “Isto é o que faz a democracia. O fato de não haver uma única resposta sobre o início da vida, não significa que não haja uma resposta melhor do que a outra. Podemos partir de um consenso: o embrião tem forma de vida. Mas e daí?”, questiona.

De acordo com especialistas, o conceito de início da vida não pode estar previsto na Constituição brasileira porque, mesmo do ponto de vista da ciência, não há uma posição unívoca sobre o início da vida humana e muito menos da condição de pessoa humana. “Não há dúvidas de que há vida em duas células que se juntam. No entanto, a questão central é reconhecer cientificamente a partir de que momento esta vida é moralmente relevante. Uma célula viva tem a mesma relevância do que o indivíduo?”, indaga o médico sanitarista Sérgio Rego, coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública. “Além do mais, é o Estado, e não a Igreja, que deve ponderar a pertinência ou não de uma determinada pesquisa”, questiona.

Embora a posição de católicos como Fonteles seja fortemente dogmática em relação ao começo da vida, há vozes que expressam visões distintas dentro da própria Igreja. Por exemplo, o teólogo brasileiro Leonardo Boff, um dos mentores da Teologia da Libertação, condenado em 1985 pelo Vaticano ao “silêncio obsequioso”, afirma que “não se pode contentar com essa visão assumida oficialmente pela Igreja nos dias atuais. Na Idade Média não era assim, pois, para Tomás de Aquino, a humanização começava apenas 40 dias após a concepção. A Igreja, para efeito de sua ética interna, pode estabelecer um momento da concepção da vida humana,” completa.

Segundo Débora Diniz, a decisão do STF em relação à Ação de Inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança deve sair no segundo semestre deste ano.

Clique aqui e leia o 4º texto da série “Ciência e Religião na mídia”, que traz uma compilação de textos jornalísticos que vêm sendo veiculados sobre o debate no STF.


crédito da foto: Rachel Aisengart Menezes (CLAM/IMS/UERJ)