O CLAM está realizando, sob a coordenação geral da antropóloga Jane Russo, a pesquisa “Sexualidade, Ciência e Profissão”. O estudo tem a parceria de Alain Giami do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica (INSERM/França) e objetiva mapear o campo da sexologia em diferentes países da America Latina. Participam, ainda, do projeto a profa. Fabíola Rohden e o assistente de pesquisa Igor Torres. O objetivo mais amplo é propiciar subsídios para a investigação das formas contemporâneas de medicalização da sexualidade e sua relação com a indústria farmacêutica.
Nesta entrevista, Jane Russo explica como uma investigação sobre o campo da sexologia pode ser inserida dentro dos objetivos do CLAM, fala dos objetivos da pesquisa e dos resultados preliminares resultantes da fase inicial de levantamento geral do campo nos seis países latino-americanos onde o estudo deverá ser realizado.
O CLAM é uma instituição que trabalha na promoção dos direitos sexuais. Como uma pesquisa de sexologia se insere nos objetivos do Centro?
A sexologia, nos seus primórdios – entre final do século XIX e início do século XX – sempre implicou, de um lado, uma compreensão biomédica e naturalizante da sexualidade e, de outro, um certo ativismo em prol do que então se chamava “reforma sexual” e que dizia respeito, entre outras coisas, à descriminalização das relações entre pessoas do mesmo sexo. Também, havia uma discussão avançada para a época sobre contracepção, aborto e prostituição. Ou seja, essa primeira sexologia continha as sementes da posterior constituição da sexualidade como campo de discussão e luta política.
A sexologia moderna, cujo início se costuma datar nos anos 60 e 70 do século passado, constituiu-se paralelamente ao feminismo e à luta pelos direitos civis de gays e lésbicas, quando ocorre uma espécie de partilha na qual de um lado ficava a luta propriamente política, no espaço público, e de outro os especialistas em sexualidade humana que se preocupavam com as chamadas “disfunções sexuais”, a partir de uma compreensão médico-psicológica. É curioso como nesse momento de constituição e fortalecimento do que viria a ser o movimento GLBTT, a preocupação dos sexólogos se desloca dos “invertidos” e outros “perversos”, que povoavam os manuais psiquiátricos do início do século, para o casal heterossexual “normal”. Tratava-se de contribuir para a manutenção do casamento, ameaçado por taxas crescentes de divórcio e pela ideologia libertária propagada pela movimento de “liberação sexual” dos anos 70, através de um investimento na sexualidade do casal.
Essa reorientação das preocupações dos sexólogos em relação aos seus colegas do início do século implicou o surgimento de novas categorias diagnósticas – as disfunções sexuais – dentre as quais se destaca a disfunção erétil masculina – e a focalização na performance sexual individual. O surgimento do Viagra nos anos 90 radicaliza o processo de medicalização e a preocupação central com a performance em detrimento do aspecto relacional e sócio-cultural que estão necessariamente implicados nos relacionamentos sexuais.
Ora, não acreditamos que seja possível falar politicamente da sexualidade e suas relações com o gênero sem levar em conta o processo de medicalização que não apenas continua, mas se aprofunda, e, sobretudo, as relações entre esse processo e a indústria farmacêutica. Acreditamos que essa discussão é tão política quanto a discussão levada a cabo pelo ativismo GLBTT ou aquele ligado aos direitos reprodutivos. E é possível afirmar que ela está presente no campo da sexologia, que está longe de ser homogêneo e desprovido de conflitos.
Qual o objetivo da pesquisa?
Objetivamos realizar uma pesquisa comparativa. Este estudo já foi feito em vários países da Europa – França, Dinamarca, Itália, Finlândia, Noruega, Reino Unido e Suécia, sob a coordenação de Alain Giami. O levantamento do campo da sexologia no Brasil está em curso. Neste ano deveremos incorporar outros países da América Latina, entre os quais Argentina, Chile Colômbia, México e Peru. No mês de março realizamos um seminário interno em que tivemos acesso a relatórios preliminares da forma como se constitui o campo nesses países. A partir desse levantamento comparado pretendemos discutir o peso diferenciado de cada uma das vertentes da sexologia, em especial a vertente clínica e a vertente ligada à educação sexual. No caso da vertente clínica, pretendemos investigar o peso relativo das diferentes profissões (notadamente médicos urologistas e psicólogos), sua relação com gênero e, sobretudo, com a indústria farmacêutica. No caso das duas vertentes, clínica e educação sexual, verificar suas relações com os movimentos sociais ligados aos direitos sexuais.
E o que se pôde depreender desse levantamento inicial?
A princípio, percebemos algumas particularidades: aparentemente o quadro argentino se encontra bem parecido com o quadro brasileiro. Parece que no México a educação sexual é mais forte que a parte de sexologia clínica. Outra impressão é que, enquanto no Brasil e na Argentina a tensão entre médicos e psicólogos é importante na estruturação do campo, não é importante no México, como também não o é na França, por exemplo. No Chile, o campo parece pouco estruturado. Do Peru e da Colômbia temos informação de que a sexologia seria um fenômeno que hoje está em declínio. Na Colômbia parece haver uma articulação forte com o movimento dos direitos sexuais. Um outro dado interessante que nos chegou de países como Argentina e Peru, e que também pode ser observado no Brasil, é que, no surgimento da epidemia da Aids, a sexologia não se envolveu nos estudos da época, não foi um campo interlocutor, papel desempenhado então pelos movimentos sociais.