CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Sexualidade controlada

O Viagra, a contracepção hormonal, a prevenção da Aids, a reprodução assistida e o controle dos criminosos sexuais representam, segundo o psicossociólogo francês Alain Giami (Instituto Nacional de Saúde e da Pesquisa Médica – INSERM), formas pelas quais a medicalização da sexualidade se manifesta na sociedade contemporânea.

Giami ficará no Brasil até novembro como pesquisador visitante do Instituto de Medicina Social da UERJ, onde ministra o curso “A medicalização da sexualidade”, com os professores Sergio Carrara e Jane Russo, no qual discutem as teorias sociológicas e históricas – de Foucault, Lanteri-Laura, Conrad e John Gagnon, entre outros – acerca da sexualidade. A estadia de Giami no IMS, porém, tem como objetivo principal o desenvolvimento da pesquisa “A profissão de sexólogo no Brasil: valores e práticas”, estudo comparativo a ser realizado pelos professores Sérgio Carrara, Jane Russo e Fabíola Rohden (IMS/UERJ), com a colaboração de Ana Teresa Venâncio (pesquisadora visitante da COC/FIOCRUZ) e Igor Torres (mestrando IMS/UERJ), em parceria com a equipe Sexualité, Société, Individu coordenada pelo pesquisador no INSERM. O objetivo da pesquisa é investigar a organização profissional dos sexólogos brasileiros, suas concepções e práticas, concentrando a atenção no processo de medicalização da sexualidade.

Giami realizou pesquisas sobre sexologia na França e em mais seis países europeus – Inglaterra, Itália, Dinamarca, Suécia, Finlândia e Noruega. “Na maioria dos países europeus, a sexologia não é uma profissão médica, é composta por psicólogos, educadores, enfermeiras. A maior parte dos sexólogos são mulheres. Apenas na França detectamos que os sexólogos, em sua maioria, são médicos (homens), o que significa que lá a sexologia é muito mais medicalizada que em outros países. No Brasil, me parece haver também uma relação clara entre a medicalização da profissão e a predominância de homens nesse campo, como na França”, afirma.Giami.

Em 1990, ele fez uma pesquisa na França sobre a representação da Aids pelas enfermeiras, com o objetivo de ver a atitude das profissionais de saúde frente os portadores de HIV. O estudo foi traduzido para o português e publicado no livro Enfermeiras frente a Aids: representações e condutas, permanências e mudanças(Editora da ULBRA). No Brasil, Giami também participará de reuniões de trabalho da equipe responsável pela pesquisa “Saúde Sexual, AIDS e Práticas Profissionais em Saúde”, do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Faculdade de Enfermagem da UERJ.

Nesta entrevista, o pesquisador fala da cultura da medicalização nas sociedades contemporâneas e de seu impacto na sexualidade e nos direitos humanos.

Como o processo de medicalização da sexualidade pode ser definido?

A medicalização em geral, e particularmente, a da sexualidade, não é simplesmente o recurso à medicina para tratar doenças, não acontece somente no âmbito da medicina e dos remédios. É um modo de pensar e de perceber as coisas de um ponto de vista médico, desde que a saúde se tornou o valor supremo das culturas. Ele se dá na vida cotidiana, justificado pela centralidade do conceito de saúde. Até meados do século 19, a liberdade era a idéia central da modernidade, conceito surgido no século 18 através da Revolução Francesa e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, as quais não se referem à saúde, e sim à liberdade, que era, então, o valor principal, do ponto de vista ético, moral e ideológico. Atualmente, essa idéia de liberdade é criticada do ponto de vista da saúde. Criaram-se limites à liberdade humana por causa da saúde. Num universo no qual todo mundo é livre para fazer as suas escolhas, o discurso da saúde fala em controlar e proibir. Minha crítica é que esse discurso tende apenas a modificar comportamentos individuais, tendo pouca ação sobre o ambiente, sobre as organizações sociais. Esse foco sobre os comportamentos individuais pode ser interpretado como uma moralização, uma vez que desenvolve um controle sobre o corpo humano.

Quando esse processo teve início?

O processo de medicalização da sexualidade começou no século 19, quando a medicina ainda estava ao lado da religião católica. Desde o começo do século 19 até o século 20, a medicina vai considerar que a sexualidade reprodutiva é a sexualidade boa e saudável e que todas as formas de sexualidade não reprodutivas são doença (masturbação, coito interrompido, homossexualidade) e, às vezes, também crime (homossexualidade).

O advento da pílula anticoncepcional na década de 60 está relacionado com tal processo?

Nesta mesma época, houve o surgimento da teoria do orgasmo, publicada, em 1966, no livro Human sexual response, no qual Master and Johnson apresentam a abordagem experimental e psico-fisiológica do processo de orgasmo. Então,através da conceitualização psico-fisiológica do orgasmo e da contracepção hormonal foi possível pensar que a finalidade da atividade sexual é o orgasmo, não a reprodução. A pílula permitiu a realização do “ciclo natural da reposta sexual humana” (Human sexual response cycle). Através dela, a medicina passou a legitimar e a favorecer a sexualidade heterossexual não reprodutiva. A simultaneidade desses dois eventos médico-científicos (pílula e orgasmo) sinalizou o início da chamada revolução sexual. A partir daí aconteceu a legitimidade da separação entre sexualidade, reprodução e casamento. A legalização do divórcio nas sociedades européias aconteceu também neste mesmo momento, quando se deu o divórcio entre a biomedicina e a religião católica. Porém, é necessário ressaltar que o advento da pílula não é o bastante para compreender o descolamento da religião e da medicina, e sim, os dois eventos em conjunto. A pílula não foi pensada para felicitar a liberdade sexual e o orgasmo, foi pensada para controlar a fertilidade, o que a coloca como um dos instrumentos da medicalização da sexualidade.

A partir da década de 1980, como o fenômeno da Aids se relaciona com o processo de medicalização?

A Aids pode ser pensada como uma outra forma de medicalização da sexualidade, não no nível químico, mas no nível da saúde coletiva, para reorganizar os comportamentos sexuais. O advento da Aids é complementar ao da pílula, que também foi criada para reorganizar a vida sexual e controlar a fertilidade. As respostas públicas frente à epidemia da Aids também foram no sentido de reorganizar a vida sexual para se proteger da infecção. A chegada da Aids trouxe de volta o uso do preservativo, não como contraceptivo como no passado, mas como uma forma de proteção e de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. A epidemia da doença simbolizou também uma nova forma de medicalização da homossexualidade como “estilo de vida” e causa da doença. Por outro lado, para a mulher, o preservativo não é usado como um bom contraceptivo. Na era da Aids, recomenda-se usar o preservativo e o contraceptivo, duas técnicas diferentes para se proteger de dois eventos indesejáveis, a gravidez não desejada e a doença transmissível. São dois aspectos da atividade sexual que fazem parte do processo de medicalização. A prevenção da Aids se encaixa nesse processo porque representa o paradigma da sexualidade protegida e negociada.

Como o sr. analisa o fenômeno do Viagra? Qual o impacto dessas novas drogas na sexualidade da sociedade contemporânea?

O fenômeno do Viagra apareceu em 1998 saído de uma década marcada pela referência permanente entre sexo e Aids, sexo e morte, sexo e doença, sexo e atividade sexual marginal, sexo e promiscuidade. Tudo isso teria que ser diminuído, controlado e protegido. Nesse contexto, o Viagra veio favorecer a emergência de uma nova representação da sexualidade, que é a sexualidade heterossexual, do casal e das pessoas com mais de 50 anos. É a volta de um discurso mais otimista sobre a sexualidade, de que sexo é bom para saúde e tem que ser ampliado. No tempo da Aids, a ideologia era de cuidado e prevenção. Aqui, sexo é novamente visto como bom para a saúde e para o bem-estar. A atividade sexual aparece como a categoria central da questão do bem-estar no âmbito da saúde sexual, levando em conta o conceito de saúde proposto pela OMS, definida como um estado de bem-estar completo, a nível físico, psicológico e social. O maior impacto do Viagra foi o reconhecimento de que sexo é bom para a saúde, o que já tinha acontecido nos anos 1960.

O sr. também aponta as novas tecnologias reprodutivas como uma das maneiras pelas quais o processo de medicalização da sexualidade se manifesta na atualidade. O que a chamada reprodução assistida representa nesse contexto?

As novas tecnologias reprodutivas simbolizam a dissociação entre sexualidade e reprodução. Se, por um lado, a pílula trouxe a possibilidade de se realizar atividade sexual sem o risco da procriação, essas novas tecnologias tornam possível a procriação sem atividade sexual. Esta, aliás, é a expressão maior da mitologia da cultura católica, segundo a qual Jesus teria sido criado sem encontro sexual. A idéia propagada pela Igreja é de abstinência e castidade. A reprodução assistida favorece duas categorias de pessoas: as que têm relações sexuais mas por problemas biológicos não conseguem procriar, e as pessoas que querem ter filhos mas não querem ter relações sexuais, incluindo aí os homossexuais, vários católicos ou pessoas reprimidas que não querem ter atividade sexual.

E como o sr.percebe o fenômeno da medicalização nas práticas da reprodução assistida?

A coleta de esperma, por exemplo, obtida através da masturbação, é uma prática obrigatória no tratamento médico da esterilidade e da assistência médica à reprodução. A observação dos dispositivos médicos e científicos da coleta de esperma, nos países do Norte (Europa, Estados Unidos) chama a atenção para uma grande confusão relacionada a esta prática: torna-se difícil distinguir se esta seria uma prática clínica que recorreria a uma prática sexual, ou se, ao contrário, se trataria de uma prática sexual realizada em um contexto médico. A coleta de esperma coloca então a questão fundamental do lugar e do tratamento da sexualidade, e de uma forma mais ampla, dos fenômenos eróticos (não reprodutivos) na prática médica. Desta maneira, o dispositivo da coleta de esperma por homens estéreis pode ser inserido no contexto dos fenômenos ligados à medicalização da sexualidade.

Quais as implicações da medicalização da sexualidade na sociedade contemporânea?

A medicalização define as normas para organizar o que é o bom nível da atividade sexual. Se uma pessoa sofre de impotência sexual, transtorno do desejo ou desejo sexual diminuído recorre à medicina. Para uma pessoa que comete crimes sexuais, abuso de crianças ou estupro de mulheres, há também remédios para fazer a castração química, uma forma da medicalização da sexualidade. Além disso, existe também a Psiquiatria que oferece tratamento psico-terapêutico dessa pessoa. Isto significa que a medicina tem o poder e a possibilidade de acrescentar à atividade sexual deficiente ou diminuir a atividade sexual exagerada ou desviante. Para pensar a questão da medicalização temos que levar em conta esses dois aspectos.

Em sua última conferência no Instituto de Medicina Social (IMS) da UERJ, em 2005, o sr. criticou o fato de haver um maior investimento, por parte das indústrias farmacêuticas, para o desenvolvimento de drogas como o Viagra, do que para a Aids. Como o sr. analisa a questão, tendo em vista a relação entre a medicalização e os direitos humanos?

A indústria farmacêutica precisa da medicina para legitimar as drogas que produz. A indústria investe pouco no tratamento da Aids. Já no campo do tratamento da disfunção erétil, se investe muito dinheiro. A lógica industrial e comercial não é a mesma lógica da medicina. Não são as necessidades das populações que vão orientar o desenvolvimento de remédios. Mas é necessário relativizar essa questão das necessidades das populações. Drogas para a Aids poderiam diminuir a mortalidade. Por outro lado, as drogas direcionadas para as disfunções sexuais, como o Viagra por exemplo, vão melhorar a qualidade de vida. O que observo é que muito pouco dinheiro está sendo investido nas drogas para o tratamento da Aids, enquanto muito dinheiro é revertido no desenvolvimento de drogas para as disfunções sexuais. Isto porque elas têm muito mais dinheiro para ganhar na área das disfunções sexuais do que na área da Aids. É necessário salientar que, quando falamos em medicalização da saúde, não estamos falando de acesso à saúde, porque grade parte da humanidade não tem acesso a uma aspirina ou a antibióticos. Este, aliás, é um dos grandes paradoxos da sociedade contemporânea: ao mesmo tempo em que coloca a saúde como princípio maior, não garante às populações o acesso aos cuidados básicos com a saúde.