O Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e no Caribe (28 de setembro) coincidiu neste 2010 com o processo eleitoral brasileiro. A data marca ainda, como fechamento da primeira década do século XXI, um período de intensa mobilização das forças políticas, sociais e religiosas. Entre avanços e retrocessos nas políticas públicas e disputas entre grupos religiosos e seculares, as discussões prosseguem e, no entanto, tardam a instituir uma legislação que amplie os direitos da mulher brasileira a interromper uma gravidez indesejada – o aborto, no país, continua a ser permitido somente em casos de risco de morte à mãe ou em gestação fruto de estupro.
A conjuntura brasileira nesse campo foi o tema central do encontro Os desafios atuais para os direitos reprodutivos e a igualdade de gênero, promovido, na terça-feira, 28 de setembro, pela Caixa de Assistência dos Advogados/RJ (CAARJ), pela Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB/Rio), pela Comissão de Bioética e Biodireito da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ) e pelo Ipas Brasil.
A presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, Margarida Pressburger, justificou seu pessimismo em relação a avanços nos direitos reprodutivos femininos, avaliando o Poder Legislativo. “Não sou otimista quanto ao Congresso Nacional. Temos uma parede religiosa, uma parede evangélica que dificulta a concretização de progressos. Mas a luta tem que continuar, pois os jovens, sobretudo, precisam ter o direito de escolher o tamanho de suas famílias e o momento em que terão seus filhos”, afirmou.
As discussões sobre aborto foram criticadas pelo enfoque limitado que adquirem. Leila Adesse, diretora o Ipas Brasil, opinou sobre a visão reducionista que há sobre a interrupção da gravidez. “Não podemos ficar presos à questão do ‘sim ou não’. É preciso mais qualidade no debate e destacar, por exemplo, assuntos que envolvem a prestação de serviços médicos, como a discussão sobre o recurso da objeção de consciência. Temos grandes desafios para intensificar o conhecimento sobre os direitos da mulher”, analisou, dizendo-se frustrada com os rumos que o processo eleitoral brasileiro tomou em relação às discussões sobre reprodução.
Para Sônia Correa, coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) e membro da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR), é fundamental ampliar os enfoques nas discussões, sem abandonar, entretanto, o argumento da saúde pública. “Acho que devemos cada vez mais enfatizar os argumentos de direito: privacidade, liberdade, direito à personalidade. Esse é o tom. No campo da saúde, precisamos refinar o argumento. Temos nos apoiado muito no argumento da mortalidade materna. De fato, é um dado concreto e não vai deixar de ser enquanto o aborto for criminalizado. E cada morte por aborto é um escândalo, pois ninguém precisa morrer em função disso atualmente, em pleno 2010. A morte por aborto é, no final das contas, resultado de uma certa lógica moral. Mas, do ponto de vista mais macro, temos que começar a identificar efeitos no que diz respeito à morbidade, por exemplo: a mulher não morreu, mas ficou estéril. Uma coisa que ninguém diz é que um aborto clandestino com hemorragia e risco de morte pode ter um efeito terrível sobre a vida sexual de uma mulher. Ela pode nunca mais querer ter sexo na vida por medo dessa experiência traumática. A saúde mental é uma das coisas que não exploramos”, explicou Sonia Correa.
A coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política utiliza o exemplo chileno para que se tenha mais aprofundamento nas discussões sobre o aborto. No país andino, a interrupção da gravidez é proibida em qualquer circunstância. “O país tem a taxa de mortalidade materna mais baixa da América Latina. Não temos idéia, no entanto, sobre qual tem sido o efeito dessa lei draconiana que restringe o aborto sobre a morbidade, a saúde mental e a sexualidade das mulheres chilenas”, disse, mostrando-se pessimista em relação à atual conjuntura política na América Latina que, apesar da onda de governos de esquerda, não resultou em avanços significativos no campo do aborto.
Os grupos contrários à despenalização e à legalização (regulamentação da interrupção da gravidez nos serviços de saúde) do aborto freqüentemente recorrem ao argumento do direito à vida, garantido pela Constituição brasileira. No entanto, ressaltou Maíra Fernandes, presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/RJ, o texto constitucional não fala em direito à vida desde a concepção. De acordo com ela, o Brasil é tão atrasado em matéria de direitos sexuais e reprodutivos que a interrupção da gravidez não é permitida em caso de risco à saúde da mãe. “Se o médico avalia que a gravidez pode gerar algum tipo de doença à mulher, ainda assim ela não terá o direito de abortar. O mesmo vale para os casos de anencefalia”, afirmou.
De acordo com Maíra Fernandes, há outros direitos que tornam possível a regulamentação do aborto no Brasil. “Temos asseguradas garantias à dignidade humana, à liberdade, à autonomia, à saúde, à intimidade. Temos que trabalhar com ponderação de direitos. O direito do feto ainda é uma expectativa de direito, enquanto que a mãe tem direitos reais, existentes. Os direitos do feto só se sobrepõem ao da mãe quando já há uma vida. Por isso, a legalização do aborto refere-se aos primeiros meses da gestação”, explicou.
Rogéria Peixinho, coordenadora da Articulação das Mulheres Brasileiras (AMB/Rio), afirmou que os debates devem ter limites claros no que diz respeito à separação do Direito e da Ciência em relação à religião. “O que paira sobre o tema são convicções religiosas” destacou, acrescentando que o panorama brasileiro é retrógrado e fundamentalista. “Os setores conservadores estão se juntando contra os direitos. Ruralistas e evangélicos se uniram no Congresso, apoiando em conjunto as demandas de cada setor”.
Também esteve presente ao encontro o assistente social Maurílio Castro de Matos, professor da UERJ que está lançando o livro A Criminalização do Aborto em Questão, que analisa o caso de Portugal, onde em 2007 o aborto foi legalizado por meio de plebiscito, e discute experiências que podem contribuir sobre os rumos dos direitos reprodutivos e sexuais femininos no Brasil. Um dos aspectos destacados por ele foi o tratamento que muitas vezes as mulheres que abortam recebem nos serviços de saúde. Ele lembrou a época em que trabalhou em uma maternidade na Baixada Fluminense – região metropolitana do Rio de Janeiro – e lidava com pacientes vítimas de complicações de abortos mal feitos. “Era comum elas serem maltratadas. Eram as últimas em termos de prioridade”, lamentou.