Na segunda-feira (14/02), o jornal espanhol “El Pais” informou, segundo dados de farmácias americanas, que as prescrições semanais dos dois principais produtos no mercado contra a disfunção erétil (antiga impotência sexual) – o Viagra, da Pfizer, e o Cialis, da Eli Lilly & Co – dispararam nos dias que antecederam o 14 de Fevereiro, dia de São Valentim ou Valentine’s Day (Dia dos Namorados na maioria dos países do Hemisfério Norte). As altas vendas e o aumento do público consumidor mostram que estes medicamentos estão sendo usados não somente para combater a disfunção erétil, mas também para potencializar a performance sexual masculina mesmo daqueles que não sofrem do “transtorno”. O sucesso destes produtos entre os homens deve-se, em grande medida, a um trabalho de marketing muito bem realizado pelos laboratórios que os produzem, embora a propaganda direta de medicamentos que precisem de prescrição só possa ser feita, no Brasil e em muitos outros países, junto à categoria médica.
As pesquisadoras Livi Faro (CLAM/IMS/UERJ), Lilian Krakowski Chazan (CLAM/IMS/UERJ), Fabíola Rohden (UFRGS) e Jane Russo (CLAM/IMS/UERJ) trabalharam sobre o material de propaganda e divulgação de fármacos para o tratamento das chamadas ‘disfunções sexuais masculinas’, destinado aos médicos – especialmente aos urologistas –, presentes no X Congresso da Sociedade Latino-americana de Medicina Sexual, evento realizado em Florianópolis em agosto de 2009 e que lançou luz sobre temas relativos à sexualidade masculina, como a disfunção erétil, a ejaculação precoce e o câncer de próstata, entre outros.
O objetivo do trabalho era discutir o que cada tipo de medicamento alardeia como qualidade, e, através deste marketing, pensar sobre a construção de um tipo de masculinidade que seria “ajudada” pela tecnologia farmacêutica, realimentando e reafirmando ideias do senso comum sobre o que seria masculinidade.
A análise resultou no artigo “Homem com ‘H’: a saúde do homem nos discursos de marketing da indústria farmacêutica” (Clique aqui para ler), apresentado no Seminário Internacional Fazendo Gênero 9 . Nele, as pesquisadoras analisam sloganscomo o do medicamento Helleva®, produzido pelo Laboratório Cristália, que dizia: “Chegou a Hora de mostrar o H maiúsculo que está no princípio de todo Homem brasileiro”.
“Há uma linguagem muito próxima do senso comum. Procura-se atrair os profissionais com linguagem e imagens pouco científicas e especializadas, embora em todo material haja referências a artigos científicos. É uma propaganda direcionada a profissionais – médicos, em sua grande maioria – mas a impressão é que estão vendendo diretamente para o consumidor. Capturam o médico através de imagens que apelam para o senso comum. Não são imagens que precisam ser decodificadas por especialistas, mas são ‘traduzidas’ por qualquer um. Eles impressionam o médico para que este possa impressionar os seus pacientes. O Helleva, por exemplo, passa uma ligeira ideia subliminar de que seu uso aumentará o pênis do indivíduo, ou que o brasileiro tem um pênis maior que o homem de outras nacionalidades”, avalia a antropóloga Jane Russo, co-autora do trabalho.
Outro exemplo era o material publicitário do Viagra (o mais famoso, por ter sido o primeiro a ser lançado, em 1998): através de slogans como “Rigidez é o objetivo” e “Só Viagra é Viagra”, a propaganda ilustrava os ‘graus de rigidez da ereção e da disfunção erétil (DE)’: Grau 1 – DE severa: pênis grosso, mas não rígido; grau 2 – DE moderada: pênis rígido, mas não o suficiente para penetrar; grau 3 – DE suave: parcialmente rígido, mas capaz de penetrar; grau 4 – sem DE: pênis completamente rígido.
A ênfase da campanha do Levitra, do Laboratório Bayer, estava no prolongamento da duração da relação sexual. Seu slogan ressaltava explicitamente: “Levitra® prolonga em até 3 vezes a duração da relação sexual em pacientes com DE” e especificava e normatizava qual seria o ideal: “1-2 min (muito curto); 3-7 min (adequado); 10-30 min (muito longo); 7-10 min (desejável)”.
“O discurso de cada um, ao exaltar as suas qualidades, implicitamente aponta as ‘falhas’ do outro. Cada um vai tentar afirmar uma especificidade, um algo a mais que o outro não pode oferecer. Passam a ideia do remédio como pura mercadoria. Eles não estão visando a cura de uma doença”, questiona Jane Russo.
Outra característica do material estudado é a presença da figura da mulher (sim, são propagandas extremamente heteronormativas – a homossexualidade masculina é completamente invisível nestas propagandas).
“A rigor, essa masculinidade heteronormativa e a sexualidade masculina centrada na ereção seriam o somatório de todas essas ‘qualidades’ ofertadas pelos medicamentos, indicando que, sem remédio, esse ‘homem com H’ se encontra em risco. Por um lado, há uma desconstrução de uma ideia de masculinidade, mostrada como instável – admite-se que o homem potencialmente pode falhar – para, em seguida, oferecer uma ‘solução’, restaurando a suposta estabilidade. Ao mesmo tempo em que desmistifica, reforça a ideia de que o homem não pode falhar nunca. Se falhar é disfunção, mas esta ‘falha’, de certa forma, torna-se uma escolha na medida em que há uma tecnologia farmacêutica disponível que ‘soluciona’ o ‘problema’”, apontam Livi Faro e Lilian Krakowski Chazan.
A instabilidade, segundo as pesquisadoras, tem a ver com a crise da masculinidade, com a crítica à dominação patriarcal masculina feita pelo movimento feminista e pelo movimento gay. “O homem desempoderado será novamente empoderado através de um medicamento que lhe traz a potência a qualquer hora e de qualquer jeito”, complementam.
Por isso mesmo, salientam as autoras, não se pode demonizar a indústria farmacêutica, uma vez que esta não atua fora da cultura na qual está inserida. “Ao lançar tais medicamentos, ela responde a questões e demandas circulantes na cultura”, avaliam.
“Estamos diante de alguns paradoxos: ao mesmo tempo em que a marca da masculinidade seria a racionalidade, a sexualidade masculina era tradicionalmente representada como ‘selvagem’, ‘instintiva’ e ‘incontrolável’. Esta sexualidade se vê agora retraduzida e reconfigurada por uma tecnologia farmacológica. As tecnologias proporcionariam um atalho para a resolução deste paradoxo, e o homem passaria a ter o controle racional, medicamentoso, sobre seu corpo sexual”, analisam as autoras.
A medicalização e a normatização da impotência, transformada gradualmente desde os anos 1980 em disfunção erétil, produziu, entre outros efeitos, a ideia de que qualquer homem, em qualquer idade, pode estar enquadrado em algum grau do ‘transtorno’. Implicitamente, amplia-se o mercado consumidor, tanto que, a partir de novas expectativas trazidas pelo surgimento destas pílulas, cada vez mais homens têm usado esses medicamentos, para além da disfunção erétil. Prova de toda esta expectativa por uma boa performance sexual por parte dos homens é o aumento nas prescrições semanais do Viagra e do Cialis às vésperas do Valentine’s Day, conforme os dados informados pelas farmácias norte-americanas.