CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Liberdades fundamentais

O Seminário Internacional Liberdades Laicas reuniu, em Porto Alegre, no Rio de Janeiro e em São Paulo, juristas e pesquisadores para debater temas como o papel do poder judiciário no Estado laico e as políticas públicas relativas aos direitos sexuais e reprodutivos na perspectiva das liberdades laicas. O evento foi uma realização da Associação dos Juristas do Rio Grande do Sul (AJURIS), da Rede Ibero-americana pelas Liberdades Laicas, do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS/UFRGS) e de El Colegio Mexiquense, e contou com o apoio do Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM /IMS / UERJ.

No Rio de Janeiro, o painel “Políticas públicas e liberdades laicas”, coordenado pela advogada Leila Linhares (CEPIA), contou com as exposições do sociólogo Juan Esquivel, da Universidade de Buenos Aires, e Daniela Knauth (NUPACS/UFRGS).

Juan Esquivel, apresentou uma análise sobre a questão da laicidade na relação Estado-Igreja na Argentina no contexto histórico contemporâneo. “Se no Brasil existe a separação entre Estado e Igreja, na Argentina não sabemos o que é isso. Os discursos políticos mostram raiz católica e legitimidade moral e espiritual da Igreja Católica. Na prática, vemos uma influência da Igreja na nomeação dos ministros da Educação, na formulação de leis e na definição das políticas públicas relativas à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos”, relatou.

Esquivel analisou como se dá, concretamente, a influência da Igreja no Estado e a reciprocidade das lideranças políticas às demandas eclesiásticas. “Vale lembrar que, até 1994, os candidatos à presidência e à vice-presidência deviam ser católicos. Depois da Constituição desse ano, isso foi mudado. Os bispos não se opuseram à mudança no quesito da religiosidade para o acesso à presidência, mas se manifestaram a favor de preservar o juramento a Deus para quem fosse ocupar o cargo”, contou.

Para o sociólogo, a experiência da convenção Constituinte demonstra como se processa a metodologia da Igreja Católica na hora de definir questões que vão ficar para a posteridade. “Com o propósito de que suas pretensões fiquem chanceladas constitucionalmente, utilizam um leque de estratégias, como documentos, mensagens, reuniões e gestões particulares”. Segundo ele, a Igreja argentina lança mão de múltiplas estratégias quando as políticas estatais não coincidem com suas proposições doutrinárias. O sociólogo citou, como exemplo, reuniões pontuais com os ministros da Educação para a modificação de conteúdos do ensino nas escolas. “A Igreja transita por um campo que lhe é alheio – o campo político. Penso que qualquer tipo de discussão ou debate que tenha a ver com as políticas públicas deve ser resolvido dentro da política”, enfatizou Esquivel.

“Ao longo dos quatro anos do governo de Kirchner, as políticas públicas – e algumas legislações – foram contestadas pelos bispos, como a vasectomia para fins de anticoncepção sem necessidade de autorização judiciária, e a ratificação do protocolo facultativo da Convenção da Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – o CEDAW – interpretada pela hierarquia eclesiástica como um atalho para a promoção do aborto”, lembrou o pesquisador. “Os programas de educação sexual e o perfil da nova lei de Educação constituem bons exemplos. Do mesmo modo, a disposição do ministro da Saúde de promover a pílula do dia seguinte nos postos de saúde dos bairros e nos hospitais públicos de todo o país, também foi vista com maus olhos pela Igreja”.

Esquivel ressaltou ser necessário perceber, segundo a experiência de cada país, se o Estado laico promove uma legislação progressista em matéria de direitos do cidadão, ou ao contrário, se os avanços desses direitos nas legislações conformam um Estado cada vez mais laico. Segundo ele, “a consolidação do processo de laicidade requererá uma transformação profunda. Nesse contexto, deverá ser definido qual o papel a Igreja Católica deverá desempenhar em uma sociedade cada vez mais democrática e plural”, concluiu.

A antropóloga Daniela Riva Knauth (NUPACS/UFRGS) falou sobre a implementação dos princípios da laicidade nas políticas públicas, situando, prioritariamente, as questões referentes às políticas relativas ao HIV/Aids. A questão levantada pela pesquisadora abordou comparativamente os significativos avanços obtidos pela a sociedade brasileira nas políticas relativas ao HIV/Aids com as lacunas ainda existentes em relação à saúde reprodutiva.. “Como uma política pública pode colocar em ação o princípio da laicidade e o que dificulta ou favorece essa implementação?”, questionou Daniela.

Em relação às dificuldades de implementação de políticas públicas relativas aos direitos reprodutivos, Daniela exemplificou o posicionamento da Igreja Católica contra a possibilidade da vacina anti-HPV ser disponibilizada na rede pública de saúde para adolescentes, como se cogitou há pouco tempo no Brasil. “De acordo com a Igreja, a vacina poderia ser um estímulo à iniciação sexual precoce de jovens meninas”, relatou.

A antropóloga citou o papel do movimento social organizado e sua dinâmica participação no poder público como um dos elementos facilitadores para o bom andamento das políticas públicas do HIV. “Além disso, percebemos também a absorção de uma rede de pesquisadores que têm um compromisso político com a questão do HIV. Assim, o movimento se posiciona contra qualquer forma de proibição à prostituição – vista pelos conservadores como forma de transmissão da Aids – e também contra a homofobia. A promoção da educação sexual, baseada no uso do preservativo, tem também desempenhado papel importante nesse processo, apesar dos ataques religiosos”.

Outro fator, segundo Daniela, poderia ser o fato de a Aids ser vista como um problema de multidões. “Existe o problema do contágio, a Aids é transmitida, diferentemente do aborto, por exemplo”.

A antropóloga também levou em conta a pluralidade dos movimentos sociais que trabalham com a questão do HIV, os quais também incluem setores da Igreja. Para a pesquisadora, se a política do HIV/Aids leva a sério o princípio da laicidade, “então é possível estender isso a outros campos, como o do aborto”, ressaltou.

A advogada Leila Linhares (CEPIA) lembrou que, assim como o movimento social organizado em torno do HIV, o movimento de mulheres dialoga com os gestores públicos e tem participação no Estado. “Temos, desde 1940, uma permissão no Código Penal para a realização daquilo que a lei penal brasileira chama de aborto legal – em caso de estupro ou risco de vida para a mulher. No entanto, só em 1997, portanto 57 anos depois, foi preciso que o Ministério da Saúde, evidentemente por ação dos movimentos de mulheres, elaborasse uma Norma Técnica dizendo que algumas unidades de saúde poderiam realizar o aborto legal, além de oferecer às mulheres a contracepção de emergência que já existia há muito tempo. Apesar das orientações das conferências internacionais, incentivando os Estados a diminuirem as legislações restritivas em relação ao aborto e a tratar qualquer tipo de aborto como uma questão de saúde pública, os avanços não ocorreram nesse campo. Ainda assim, os resultados são irrisórios, e não é por falta de pressão política do movimento de mulheres ou por falta de sensibilidade do/as profissionais do Ministério da Saúde”, assinalou.

Segundo ela, há uma cultura incipiente em relação à laicidade do Estado. “A nossa cultura é a da não-laicidade, ou seja, a de imaginar que o Estado tem esse poder de utilizar suas normas morais e religiosas para influenciar práticas e valores. É preciso avançar na questão democrática brasileira. O aborto é um elemento de difícil debate e o embate com a Igreja é extremamente cansativo. Assim, a discussão só vai pra frente se houver o envolvimento de outros setores”, observou.

Leila chamou a atenção para a baixa participação das mulheres na política. “O debate sobre a descriminalização do aborto traz como necessário o reconhecimento de uma cidadania feminina plena”. Segundo ela, a discussão sobre laicização e aborto passa por uma questão de gênero étnico-racial e de classe. “As maiores vítimas do aborto ilegal são as mulheres pobres e negras”, concluiu.

Poder judiciário

Compondo o painel “O poder judiciário no Estado laico”, coordenado pelo juiz Roberto Arriada Lorea (AJURIS), a advogada Miriam Ventura, da Rede Feminista de Saúde, ressaltou que a questão do aborto é muito mais atacada pelos setores religiosos quando colocada como um direito individual do que quando é apresentada como uma questão de saúde pública. “Liberdade é uma questão relacional”, disse ela, lembrando que, na Constituição brasileira, a assistência religiosa está presente no artigo V, “no mesmo elenco das liberdades laicas” e o ensino religioso, no artigo X.

Miriam observou que, atualmente, as demandas judiciais que discutem a laicidade estão centradas nas questões dos direitos sexuais e reprodutivos. “Os atores religiosos se organizam e buscam o judiciário para vitalizar um interesse próprio, sustentado por um dogma. Os argumentos da Igreja são baseados em uma ética naturalista, em argumentos naturalistas. Mas não podemos mais fundamentar questões em dogmas religiosos e sim pela racionalidade”, defende.

Segundo a advogada, a moral religiosa e a tentativa da Igreja em interferir no debate através de uma ética naturalista são os maiores obstáculos para que as políticas públicas relativas aos direitos reprodutivos sejam implementadas no Brasil. Para Miriam Ventura, esse uso do Direito como um instrumento por parte das instituições religiosas cristaliza, na sociedade brasileira, uma não-laicidade.

O procurador da República Daniel Sarmento (Ministério Público Federal) lembrou que o significado de democracia é muito mais do que um governo da maioria. “A democracia parte da premissa de que as pessoas podem dialogar e, através do diálogo, se aprimorar. O problema é que os argumentos religiosos não são democráticos porque excluem quem pensa diferente. Quando as igrejas se colocam contra o aborto, acho válido o argumento – embora pessoalmente não concorde – de que isto não deve ser permitido porque a vida começa na fecundação e ali então já existe uma vida. O que não é válido é pensarem que todos devemos aceitar esse argumento porque ele está escrito na Bíblia”, enfatizou.