por Washington Castilhos
Colaboraram: Andrea Lacombe (Argentina)
Fábio Grotz (Brasil)
Pilar Pezoa (Chile)
Franklin Gil Hernández (Colômbia)
Christian Israel Rea Tizcareño (México)
Rosa Cisneros (Peru)
No fluxo de notícias sobre o abuso sexual de padres contra crianças e adolescentes, veiculadas pela imprensa norte-americana nos anos 90, um bispo da Flórida acusado de manter relações sexuais com um seminarista explicou ao jornal The New York Times que havia sido “influenciado pelo clima de experimentação sexual” da época. O caso é citado no artigo “Changing Times, Changing Crimes”, do sociólogo John Gagnon, publicado em 2002 na revista Sexualities. Nele, Gagnon recorda que, passado um primeiro momento de descrença, passou a enxergar uma certa legitimidade no que o clérigo atribuía como causa para seu comportamento: “Afinal, o que é a Sociologia senão a atribuição das condições sociais como causa das ações individuais? Em meus trabalhos sobre sexualidade tento mover o foco, que sempre recai sobre os atos sexuais, para o contexto mais amplo da vida social, no qual tais atos são roteirizados”, diz o autor do livro “Uma interpretação do desejo” (CLAM/Ed. Garamond), obra em que descreveu sua teoria dos scripts sexuais (ou “roteiros sexuais”).
Os primeiros casos de abuso sexual cometidos por clérigos – assim como o caso do bispo da Flórida – chegaram à imprensa nos anos 1990. No início de 2010, porém, revelações trouxeram de novo o assunto à agenda pública. A origem deste novo imbróglio reside nas acusações que resvalam na figura do Papa Bento XVI, ora por conta do envolvimento de seu irmão em casos de agressão a crianças em uma escola alemã, ora devido ao suposto papel do então cardeal Joseph Ratzinger no acobertamento de membros da Igreja acusados de abuso sexual. Na semana passada, Bento XVI usou pela primeira vez em suas declarações o termo “abuso sexual” – o qual preferiu usar a fazer uso da palavra “pedofilia”.
Neste contexto, é preciso de antemão discernir pedofilia e abuso sexual, já que, segundo alguns autores, o abuso sexual de uma criança ou de um adolescente não é necessariamente realizado por um pedófilo.
Autor do artigo “De pedófilo a boy lover: ilusão ou uma nova categoria sexual que se anuncia?”, publicado no livro Prazeres Dissidentes (CLAM/Ed. Garamond), o pesquisador Alessandro José de Oliveira explica que “há diversas circunstâncias, como desentendimento entre cônjuges, momento de estresse, situações sociais com ausência de adultos, entre outras, que podem levar um sujeito (homem ou mulher) a cometer abuso sexual. Já o pedófilo, segundo o Manual de Diagnóstico e Estatístico da Sociedade Americana de Psiquiatria, é definido em termos médicos como uma patologia. Nesse sentido, o indivíduo pode simplesmente se sentir angustiado por fantasiar uma relação sexual com criança e nunca ter tocado em nenhuma delas. Mas pode também abusar sexualmente de uma criança. Portanto, nem todo pedófilo é um abusador, bem como nem todo abusador é um pedófilo”.
Para o antropólogo Richard Parker, a pedofilia é um conceito construído por especialistas e que mudou com o tempo, conforme afirmou em recente entrevista ao jornal O Estado de São Paulo. Segundo ele, a pedofilia é “um guarda-chuva que inclui práticas que, em outras culturas e outros tempos, não necessariamente eram entendidas como pedófilas. Na Grécia antiga, por exemplo, as relações sexuais entre adolescentes e adultos, principalmente entre homens, consistiam num tipo de tutela por parte do mais velho, quase de um professor transmitindo orientações que poderiam ajudar a se desenvolver em todos os sentidos. Outro exemplo, mais antropológico, são as relações sexuais entre rapazes e homens adultos em diversas sociedades do Pacífico como ritual de transição da juventude para a vida adulta. Tanto uma quanto outra são construções da sexualidade que faziam sentido naqueles contextos, algo completamente distinto do que costuma ocorrer na nossa sociedade, que não tem esse tipo de prática, nem crença”.
Parker explica ainda que a pedofilia passou a ser condenada durante um processo intenso que incluía a ciência, a psiquiatria e a sexologia, que classificaram práticas sexuais como normais e anormais – o conceito de homossexualidade nasceu também neste período. “A antropóloga feminista Gayle Rubin argumenta que, do mesmo modo que existe uma hierarquia de gênero que normalmente dá poder aos homens, existe uma hierarquia da sexualidade, na qual algumas manifestações da diversidade sexual humana são avaliadas pela ciência e pela religião como positivas ou negativas. De um lado tem o sexo bom; do outro, o ruim. A pedofilia, juntamente com o masoquismo, está no ponto mais baixo dessa hierarquia. Veja a avaliação que as pessoas ao redor fazem dela. Não há nada visto como tão condenável, tão questionável quanto as relações pedofílicas de adultos que se aproveitam da falta de defesa de jovens e crianças para tomar vantagens sexuais”, analisou.
Pedofilia, celibato, homossexualidade…
Nos recentes escândalos, num primeiro momento a imprensa evidenciou uma relação causal entre celibato e pedofilia. Num segundo ato, as declarações do secretário de Estado do Vaticano, cardeal Tarcísio Bertone, de que a pedofilia estaria ligada ao ‘homossexualismo’ (sic), descartando a relação entre pedofilia e celibato sacerdotal, suscitou intensos debates. As declarações do secretário foram vistas por muitos como uma estratégia da Santa Sé de atribuir a prática do abuso de crianças e jovens na Igreja a padres com “problemas de desvio” e desviar o foco da atenção que havia sobre o Vaticano. O CLAM buscou ouvir especialistas para discutir tais associações, especialmente a equação homossexualidade-pedofilia sugerida por Bertone.
Na opinião da socióloga brasileira Tatiana Landini (USP), a associação entre celibato e os casos de abuso “é simplista e sinaliza um ‘bode expiatório’ para justificar episódios de violência sexual que ocorrem também em grupo não celibatários, como família, escolas, creches, parques, praias e internet”. Em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, o articulista Contardo Calligaris rechaça a vinculação do celibato com a ocorrência dos casos de abuso.
A socióloga Lúcia Ribeiro, do Instituto de Estudos da Religião (ISER/Assessoria), descarta uma causalidade mecânica. Ela afirma que o celibato não é o fator que está em jogo e sim a maneira como ele é instituído. “É uma opção perfeitamente legítima, que sempre foi valorizada ao longo da história da Igreja. É essencial, entretanto, que seja fruto de uma escolha livre: por ser uma opção difícil e exigente, não pode ser imposta. Sua obrigatoriedade é que pode levar a distorções e a uma vivência deformada e pouco saudável da sexualidade”, aponta e conclui que a crise atual mostra a importância de se repensar o estatuto do celibato obrigatório e, assim, atualizar um debate que já vem ocorrendo entre alguns setores, no interior da igreja.
Coordenadora da organização Católicas pelo Direito de Decidir, no Peru, Eliana Cano acredita que o celibato foi uma medida estabelecida para proteger interesses econômicos e políticos no interior da hierarquia eclesial, e nunca foi pensado como um “sacrifício para a santidade”. “Nesse sentido, o celibato não é garantia de nada, e acaba por abonar a moral dupla dos representantes da Igreja”, afirma.
O Vaticano, por outro lado, mantém-se firme na convicção de que o celibato não é uma causa para estes eventos. Foi então que o cardeal Bertone, a pretexto de se explicar diante dos inúmeros casos de abusos que inundam os meios de comunicação, alegou que a homossexualidade, e não o celibato, deve ser relacionada aos casos de pedofilia (há 2 anos, o mesmo Bertone havia instalado a ideia de que era necessário evitar que os homossexuais chegassem a exercer o sacerdócio, já que somente desta maneira se poderia resolver os casos de pedofilia na Igreja). Imediatamente, a declaração da autoridade clerical foi criticada e rebatida por ativistas e intelectuais, por carecer de fundamentação científica. Dias depois, a Santa Sé voltou atrás e retificou as declarações.
A posição do Vaticano, no entanto, não surpreende, uma vez que a oposição às relações homoafetivas bem como a visão da homossexualidade como um comportamento anti-natural são antigas. Em 1986, tipificou a pessoa homossexual como portadora de uma desordem (apesar de então fazer mais de dez anos que a homossexualidade tinha sido desqualificada como uma doença mental por parte da Associação Americana de Psicologia e da Associação Americana de Psiquiatria). Em 2005, já com os meios de comunicação denunciando os casos de abuso sexual por parte de seus clérigos, a Santa Sé sancionou um documento com o objetivo de limitar o ingresso de “pessoas com tendências homossexuais” aos seminários. O documento afirma: “Se um candidato pratica a homossexualidade ou apresenta tendências homossexuais profundamente arraigadas, seu diretor espiritual, assim como seu confessor, tem o dever de dissuadi-lo em consciência de seguir adiante para a Ordenação”.
“Este documento e as palavras do cardeal Bertone têm em comum a construção da figura do ‘homossexual’ como o lugar de limpeza moral da pedofilia e como eixo de fuga para o tema do celibato, que vem perseguindo a Igreja Católica nos últimos anos”, avalia o pesquisador argentino Juan Marco Vaggione, doutor em Direito e Sociologia e professor da Universidade Nacional de Córdoba (leia a entrevista com Vaggione na íntegra).
De acordo com Vaggione, outro aspecto interessante a considerar na declaração de Bertone é a presença de argumentações científicas para justificar posturas homofóbicas eclesiais. O ativismo religioso conservador justifica, cada vez mais, suas posturas através de argumentos científicos. “Em suas declarações, Bertone não fala de moralidade ou de pecado, não menciona a Bíblia ou a Jesus, mas afirma que a ciência (em particular a psicologia e a psiquiatria) ‘têm demonstrado’que não há relação entre celibato e pedofilia, mas sim entre homossexualidade e pedofilia. Este apelo ao discurso científico, à verdade científica, não é casual, mas constitui uma estratégia privilegiada dos setores religiosos mais conservadores. A estratégia é falar em ciência para justificar posturas fortemente restritivas em nível moral”, afirma Vaggione.
O recurso, porém, não funcionou. Autoridades, médicos e movimentos de defesa de grupos homossexuais no Chile pediram a Bertone que provasse o elo científico entre homossexualidade e pedofilia. “É necessário frear a intenção do Vaticano de colocar a comunidade homossexual como bode expiatório, e assim desvincular a Igreja da responsabilidade que tem nos casos de abusos sexuais”, diz o militante Rolando Jiménez, presidente do MOVILH (Movimiento de Integración y Liberación Homosexual), organização ativista LGBT do Chile.
Na semana passada, em uma declaração inédita e categórica, a Igreja Católica chilena pediu perdão pelos casos de pedofilia que têm envolvido os sacerdotes daquele país. Através de uma mensagem intitulada "Reconstruir desde Cristo la mesa para todos", o presidente da Conferência Episcopal, monsenhor Alejandro Goic, admitiu e enumerou os delitos. Revelou que existem cinco sacerdotes condenados, outros cinco que estão sendo investigados e dez sob denúncias de abuso sexual.
No Peru, embora assim como no Chile os coletivos LGBT e feministas e os grupos universitários e de defesa dos direitos humanos tenham reagido às declarações de Bertone, a Igreja Católica peruana, diferentemente do país vizinho, recrudesceu: depois das mal sucedidas afirmações do secretário da Santa Sé, o cardeal Juan Luis Cipriani, arcebispo de Lima, afirmou existir “uma estratégia de complô contra o Vaticano e que o diabo está presente”.
“A hierarquia da Igreja Católica se encontra cada vez mais em uma posição sem saída, e acaba apelando a estes recursos para distrair a atenção da opinião pública sobre seus atos”, salienta Eliana Cano, coordenadora da organização Católicas pelo Direito de Decidir peruana.
No Brasil, a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) e a Rede Feminista de Saúde – Direitos Sexuais e Reprodutivos emitiram notas públicas de repúdio às declarações ás declarações do Vaticano. A Red de Salud de las Mujeres Latinoamericanas y del Caribe também se posicionou.
Para a teóloga Judith Vázquez Arreola, da Universidad Iberoamericana do México e integrante da organização civil Acción Ciudadana de Construcción Nacional, uma das mulheres que se casaram na primeira cerimônia de matrimônios entre pessoas do mesmo sexo na Cidade do México, as declarações do secretário do Vaticano têm um fundo político. “Esta perversa associação dos delitos sexuais da Igreja Romana com a homossexualidade tem a ver com os avanços da luta do movimento social ou de reivindicação dos direitos de lésbicas, gays e transexuais ao redor do mundo. As declarações de Tarcisio Bertone não são novas. Estes argumentos foram usados em 2001, com os casos de pederastia em Boston, e são argumentos usados nos anos 70 e 80, quando os sacerdotes eram surpreendidos em delitos sexuais e enviados a electroshocks, para serem ‘recuperados’ em sua saúde”, relata. (leia a íntegra da entrevista de Judith Vázquez aqui).
Na opinião dos especialistas entrevistados, o episódio demonstra ser necessário tomar cuidado com uma suposta relação de causa e efeito, ou seja, ter cautela para não se associar a existência tão direta de tal correlação, afim de não gerar interpretações estigmatizadas e equivocadas.
“Parece-me absolutamente imperativo dissociar homossexualidade masculina de pedofilia. Não quero dizer que não haja casos, mas há um verdadeiro pânico moral em torno do assunto e uma invisibilização assaz grave no que concerne à cotidianidade dos abusos contra crianças do ‘sexo’ feminino no âmbito da família e de relações de vizinhança. Afinal, do que se trata abuso sexual dos padrastos e pais? E o de meninas engravidando aos 10 anos de idade de homens mais velhos, como ocorre em diversas regiões do Brasil?”, questiona a antropóloga Maria Luiza Heilborn, professora do Instituto de Medicina Social da UERJ e coordenadora do CLAM.
A antropóloga lembra que uma das dimensões da pedofilia menos estudada e discutida é aquela que acontece dentro de casa, entre parentes.
O sociólogo colombiano Manuel Antonio Velandia Mora, refugiado e asilado na Espanha por motivos políticos e por sua orientação sexual, e cofundador, em 1976, do Movimiento de Liberación Homosexual de Colômbia (MLHC), concorda: “Não tenho dúvida de que os maiores violadores sexuais de menores são pessoas heterossexuais, geralmente familiares próximos, especialmente padrastos e madrastas, tios e tias, além de amigos íntimos à família”, sustenta. Dados do Instituto Nacional de Medicina Legal, instituição governamental responsável pela investigação forense na Colômbia, mostram que, nos casos de abuso sexual a menores, mais de 80% correspondem a violações cometidas por pessoas heterossexuais (12.247 meninas e 2.593 meninos foram abusados sexualmente durante o ano de 2006), tendo em conta que quase sempre o agressor é um homem (Semana, 2007). Em 2007, dos 20.273 informes periciais sexológicos, 15.353 (85,7%) corresponderam a menores de idade. Para o total de casos, em 18.9% deles o agressor era um desconhecido e em 11.5% um vizinho; se somarmos os possíveis agressores que têm algum grau de parentesco com a vítima (padrasto 8,7; pai 7,9; tio(a) 4,8; primo(a) 3,6; irmão(a) 2,2; avô/avó 2,1; cunhado 0,7) chega-se a 30%. O domicílio segue sendo o cenário de maior risco. Estima-se que somente 30% dos casos são denunciados, pois, como o agressor é um membro próximo da família do menor, muitas vezes conta com a cumplicidade do resto dos familiares.
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Em artigo no jornal Folha de São Paulo do dia 31 de março, o colunista Marcelo Coelho criticou a proteção que clérigos acusados de abuso recebem da alta hierarquia da Igreja.