A nova lei que descriminaliza o aborto na Espanha entrou em vigor na segunda-feira, 5 de junho. A legislação, aprovada em fevereiro pelo Parlamento espanhol, estabelece o direito à interrupção voluntária da gravidez até a 14ª semana de gestação. Enquanto isso, no Brasil, o aborto segue sendo uma prática proibida e estigmatizada. Estudo realizado pela antropóloga italiana Silvia de Zordo, pesquisadora da Mailman School of Public Health da Universidade de Columbia (EUA), feito em dois hospitais maternidade da cidade de Salvador (Bahia), mostra o quanto tal estigma influencia nas práticas clínicas dos profissionais de saúde. Em palestra realizada no CLAM no dia 7 de junho, ela lembrou que, ao terminar o trabalho de campo de sua pesquisa de doutorado sobre políticas de planejamento familiar, contracepção e desigualdades sociais, de gênero e raça (EHESS, Paris – campo em Salvador: 2003-2004), o que mais chamou sua atenção – e o que a levou a focar sua pesquisa de pós-doutorado sobre o tema do aborto – foi observar que as mulheres de baixa renda, moradoras de bairro popular, têm uma relação difícil com o discurso e as práticas médicas no campo da reprodução/contracepção, devido principalmente ao baixo nível educacional destas e ao acesso difícil e limitado que elas têm aos serviços de planejamento familiar e aos métodos contraceptivos oferecidos por tais serviços (em particular ao DIU e as injeções hormonais).
Segundo a pesquisadora, estas mulheres, das mais jovens (18 anos) às mais velhas (50 anos), são consideradas (e se consideram) social e moralmente responsáveis pela contracepção e cuidado das crianças. Além de procurarem interromper as gravidezes não planejadas ou não desejadas através de abortos auto-induzidos com citotec, muitas vezes escondidas e em condições não seguras, elas procuram ligar as trompas depois de ter dois filhos, independente da idade que tenham (a Lei brasileira estabelece os 25 anos e/ou 2 filhos vivos como requisitos para poder ligar as trompas).
“Quando comecei minha pesquisa de doutorado sobre planejamento familiar, a situação da saúde e dos direitos reprodutivos no Brasil me parecia paradoxal. Ao mesmo tempo em que a ligadura tubária é um dos métodos contraceptivos mais usados pelas mulheres, há leis restritivas sobre o aborto e altas taxas de mortalidade materna. Então, se por um lado as mulheres podem escolher não ter mais filhos ligando as trompas, por outro lado elas não podem interromper uma gravidez indesejada. O Brasil tem um sistema público de saúde bem estruturado, que oferece serviços de planejamento familiar e métodos contraceptivos gratuitos – o que não existe em quase nenhum país, seja na América Latina, na América do Norte ou na Europa – e, ao mesmo tempo, apresenta elevadas taxas de mortalidade materna, devido a serviços ineficientes de um lado e a prática do aborto clandestino do outro”, avaliou a pesquisadora.
Já em sua pesquisa de pós-doutorado sobre as “Experiências e representações dos profissionais de saúde acerca do aborto legal e ilegal”, feita em dois hospitais maternidade de Salvador (BA), em 2009, o que mais chamou sua atenção foi perceber o quanto o medo dos médicos de serem denunciados ou estigmatizados por lidar com aborto legal ou com as seqüelas do aborto ilegal influencia as escolhas e a sua prática profissional, levando às altas taxas de objeção de consciência em casos de abortos previstos em Lei e à discriminação das pacientes com abortos induzidos incompletos, que nem sempre são atendidas de forma humanizada.
Nesta investigação, Silvia entrevistou em seu trabalho de campo, em Salvador, 25 profissionais de saúde de um hospital que oferece serviços de abortamento legal e 20 outros profissionais em uma maternidade da capital baiana situada na periferia, entre eles ginecologistas, obstetras (metade deles eram ginecologistas obstetras), enfermeiros(as), assistentes de enfermagem e assistentes sociais. “Observei que, mesmo reconhecendo e concordando que o que leva muitas mulheres de baixa renda a interromper uma gravidez não planejada são principalmente as dificuldades financeiras que elas enfrentam e a falta de ajuda/suporte da família e do parceiro, a falta de participação do parceiro na contracepção e no cuidado das crianças é ‘naturalizada’ pela maioria dos profissionais de saúde entrevistados, em particular pelos médicos. Para eles, os homens não cuidam disso, acham que isso é responsabilidade da mulher. Além disso, mesmo reconhecendo que os serviços de planejamento familiar não são sempre eficientes, muitos médicos observaram que as pacientes do SUS que eles atendem a cada dia, sobretudo as jovens, são irresponsáveis, e procuram prazer sexual sem pensar nas conseqüências”, relatou a antropóloga.
A pesquisadora lembra que, nas entrevistas, quando perguntados sobre a responsabilidade do homem na esfera sentimental e da contracepção, os médicos comentavam que “os homens são assim”, “a mulher tem que assumir”, ou como afirmou uma médica, “Ela curtiu na hora do prazer, agora tem que curtir a dor”. Um médico disse “Eu sou homem e acho difícil isso mudar”.
Segundo De Zordo, em sua pesquisa de pós-doutorado, um dos dados mais interessantes que emergiram foi que o aborto se configura no discurso de muitos profissionais de saúde como uma transgressão das normas de gênero. “Há uma classificação moral do abortamento e das mulheres que provocam ou solicitam um aborto. Ao mesmo tempo em que as mulheres vítimas de estupro, que têm direito a realizar um aborto legal caso fiquem grávidas, se encaixam na visão normativa da mulher vítima, elas são também vistas como suspeitas – ’e se ela estiver mentindo?’, se perguntavam muitos médicos. As mulheres que fazem/provocam aborto transgridem as normas de gênero baseadas na idéia da mulher-feminina-de-instinto-maternal. Há uma naturalização intensa do processo reprodutivo e da mulher/mãe”, salientou.
Outro fator que chamou sua atenção foi a utilização de técnicas de curetagem como procedimento médico usual para lidar com o aborto provocado. Ela atribui o não uso de outras técnicas como reação dos médicos diante do possível estigma de serem considerados (as) de “aborteiros(as)”, caso mostrassem familiaridade com técnicas abortivas, como a AMIU (Aspiração Manual Intra-Uterina), procedimento médico rápido e seguro de esvaziamento uterino para o tratamento do aborto incompleto e para a biópsia endometrial, usado em vários países do mundo. Esta técnica, como observaram muitos médicos, é usada prioritariamente, no Brasil, em clinicas clandestinas, onde mulheres de classe médio-alta abortam ilegalmente. A maioria dos médicos entrevistados pela pesquisadora conhecia essa técnica, sabia que era mais rápida e menos complicada e que com AMIU não há necessidade de anestesia geral. Perguntados por que então usavam curetagem, a resposta foi “falta de formação e informação”.
“Havia médicos treinados nos dois hospitais que não sabiam que tinham os instrumentos necessários para realizar a AMIU. Pelo que me foi contado, há um certo apego às técnicas antigas. Em particular os médicos mais jovens falaram que os médicos mais velhos não queriam usar AMIU porque eles tinham o ‘habito’ de usar curetagem. Em outras palavras, eles se sentem mais tranqüilos em realizar a curetagem. Mas há também uma outra questão: muitos obstetras observaram que a AMIU é utilizada em clínicas clandestinas para pacientes de classe médica alta. Então minha hipótese é que a AMIU não é muito utilizada por ser estigmatizada e relacionada à prática do aborto clandestino. Os médicos têm medo de serem denunciados ou pelo menos estigmatizados pelos colegas como ‘aborteiros(as)’, se eles mostram competência e habilidade com essa técnica”, afirmou De Zordo.
Segundo ela, há também uma distinção social entre técnicas que corresponde à distinção entre pacientes do setor publico e particular: a curetagem pode ser considerada uma técnica suficientemente boa para pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), enquanto a técnica melhor, a AMIU, é um privilegio reservado as mulheres de classe médio-alta.
No que se refere ao aborto legal, no caso brasileiro em apenas duas circunstâncias o aborto é permitido: risco de morte da mulher e gravidez resultante de estupro. Neste último caso, a obrigatoriedade da vítima em apresentar o boletim de ocorrência policial – que metade dos médicos entrevistados achavam preciso – já não mais existe: vale a palavra da mulher. Porém, para realizar um aborto legal, a mulher deve ter primeiramente uma entrevista com a assistente social e com o psicólogo (a) do hospital. “O objetivo da entrevista é, nas palavras dos obstetras, para confirmar se foi realmente estupro e para avaliar se ela quer realmente interromper a gravidez. As psicólogas, pelo contrário, falam que não é para confirmar se foi realmente estupro, mas para saber se ela tem condições psicológicas para passar pelo trauma do abortamento. Achei interessante que as psicólogas, mesmo falando de casos muito dramáticos de estupro, nunca faziam conexão entre a categoria de trauma e o estupro, mas sim entre o trauma e o abortamento”, observou a antropóloga.
Todos os casos devem também ser avaliados pelo comitê de ética do hospital que oferece o serviço de abortamento legal, previsto por lei. “Alguns médicos falavam que na verdade não deveria ser preciso, mas eles se sentem mais protegidos assim”, disse Silvia. O problema, segundo ela, é que há um tempo médio de espera de uma semana para se conseguir uma aprovação do comitê de ética. O resultado desta burocracia é que o tempo de espera às vezes é tão longo que a gravidez pode vencer o prazo estabelecido pela lei e, nesses casos, o abortamento não pode mais ser realizado. E não é só isso: às vezes a paciente é internada, mas o plantão inteiro se recusa a realizar o procedimento, então ela tem que esperar.
A questão da objeção de consciência, de acordo com Sílvia de Zordo, é um dado importante. “Uma minoria dos obstetras fala que o médico pode recusar só se tiver um colega disponível para fazer o procedimento. Os outros falam que o médico sempre tem o direito de recusar e, se todos do plantão se recusarem a fazer o aborto, o caso passa então para outro plantão, e isso não é bem o que o código de ética médica e a Norma Técnica do Ministério da Saúde estabelecem”, contou a pesquisadora.
Os profissionais de saúde têm, de acordo com o estudo, pouco conhecimento sobre as normas técnicas do aborto legal. “Eu ouvi falar, mas não conheço os detalhes, não tenho tempo para ler tudo…”, era um relato comum, apesar de o Ministério da Saúde e a Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) terem promulgado duas normas técnicas importantes que visam promover a implantação, multiplicação e a melhoria dos serviços de aborto legal nos casos previstos pela lei e também a humanização do atendimento às mulheres com aborto incompleto.
A antropóloga lembrou que muitos médicos relataram que vários colegas discriminavam as pacientes com aborto incompleto e as deixavam esperar às vezes mais do que o tempo necessário para que elas estivessem prontas para realizar uma curetagem ou induzir a expulsão do feto. Vários médicos também relataram o caso de uma mulher com aborto incompleto em gravidez avançada que foi “esquecida” e morreu em outra unidade de saúde logo depois. “A maioria dos obstetras entrevistados viu pelo menos uma mulher morrer de aborto induzido por causa de manipulação, mas também por uso abusivo de Citotec. Os obstetras acima de 45 anos são os que viram mais mulheres morrerem de aborto inseguro, porque na época que começaram a trabalhar as mulheres não usavam o medicamento, mas sim objetos perfurantes como o talo de mamona e o permanganato de potássio. Porém, apenas 25% sabiam que o aborto é a primeira causa de mortalidade materna em Salvador, principalmente os mais jovens. E a maioria dos médicos e também dos outros profissionais de saúde não sabia que nos países onde o aborto foi legalizado, a taxa de mortalidade materna e de abortos diminuiu”, relatou.
De acordo com a pesquisa da antropóloga, a maioria dos obstetras, principalmente os mais jovens, concorda que o aborto é um problema se saúde pública e também um direito da mulher, e que os médicos deveriam obedecer à lei e não à Igreja. Estes profissionais gostariam também que o aborto fosse legalizado em casos de anencefalia e casos graves de má formação fetal. Caso o aborto fosse legalizado, a maioria afirmou que deveria haver limites de tempo para interrupção da gravidez. Entre os ginecologistas obstetras, aqueles abaixo de 30 anos e acima de 45 anos são mais favoráveis à legalização. “A experiência com altas taxas de mortalidade materna devido ao aborto é fortemente associada com atitudes liberais, o que explica porque médicos acima de 45 anos são favoráveis à legalização”, afirmou a palestrante.
Entre os relatos dos profissionais de atitudes mais liberais, a antropóloga lembra ter ouvido frases como: “Elas vão fazer isso de toda a maneira, quer eu queira, goste ou não”, “Como profissional e como médico tenho que cuidar da saúde dela, nem todos compartilhamos os mesmos valores e a mesma religião”. “O corpo é dela e ela tem o direito de fazer o que quiser, mesmo que eu não concorde”.
Para a pesquisadora da Universidade de Columbia, o Ministério de Saúde brasileiro deveria investir mais em uma melhor informação para obstetras e profissionais de saúde sobre mortalidade materna e aborto, sobre as normas técnicas que já existem e os serviços de aborto legal e oferecer treinamento para estes profissionais sobre técnicas para a realização do procedimento.