por Washington Castilhos
Empatia é um conceito formulado para definir a capacidade de colocar-se no lugar do outro, para sentir o que o outro sente. Na gramática dos direitos humanos, apregoa-se que o uso da empatia pode ajudar na aceitação das diferenças e no enfrentamento de discriminações relativas ao gênero, à sexualidade, à cor/etnia e a outros determinantes de desigualdades sociais. Mas, para esse "Outro", ter empatia não basta. É preciso saber interpretar a posição em que o "outro" está e entender os significados de certas subjetividades, compreendendo que ele tem sentimentos que você, apesar da empatia, não tem. Isso explicaria, por exemplo, porque muitas mulheres se colocam contra o uso, por homens, de avatares ostentados nas redes sociais em datas como o 8 de março — o avatar deste ano usado por elas para celebrar o seu dia foi "Pela legalização do aborto" — ou em episódios como o do estupro coletivo que mobilizou as redes — que dizia "Eu luto contra a cultura do estupro" —, por alegarem que foram momentos delas, que dizem respeito diretamente a elas. E, sem a intenção de reforçar visões calcadas na oposição homens versus mulheres, pode-se dizer que dificilmente os homens vão entender ou sentir o preciso significado do "ser estuprada" da mesma maneira que as mulheres, ou compreender o sentido de sororidade que as une.
No Brasil, na semana do dia do Orgulho LGBTI — comemorado pela comunidade a partir da revolta de Stonewall, em 1969 — um videoclipe protagonizado por um famoso ator cis gênero teve mais de um milhão de visualizações ao mostrá-lo interpretando uma transexual que se vinga de seu agressor após ter sido vítima de violência transfóbica. A caracterização — justificada em entrevistas dadas pelo ator como forma de dar visibilidade ao preconceito enfrentado por pessoas trans — gerou questionamentos. Ativistas trans inquiriram se o segmento deveria ser representado por outras pessoas que não elas mesmas. Assim como fizeram as pessoas negras no passado, quando reivindicaram o direito de interpretar elas próprias nas artes cênicas e deixaram de ser interpretadas por atores e atrizes brancos pintados de negros, o que os/as trans querem agora é ocupar esses espaços e representar seus próprios papéis. Reivindicam que nenhum homem cis ou mulher cis, independente de sua orientação sexual, deve representar uma pessoa trans, uma vez que somente ela sabe mostrar suas dores, silenciamentos e exclusão.
O massacre ocorrido na boate Pulse serve como outro exemplo de um desses assuntos que falam mais diretamente a determinados indivíduos. Não que um público mais amplo não possa se sensibilizar com a tragédia da boate de Orlando, mas para entender e sentir a dimensão do ocorrido e da mobilização por ele gerada é preciso compreender o significado daquele espaço e como o pertencimento àquela comunidade ajudou na construção das identidades e subjetividades de quem o frequentava até então. Não que espacialidades e locais de sociabilidade gays sejam os temas mais importantes a discutir diante dos 49 assassinatos, mas também parece não haver dúvidas de que foi o significado que a boate tinha para aquela comunidade lgbti que o assassino levou em consideração na hora de escolher o "alvo". Ele sabia que, matando o quanto conseguisse naquele espaço, atingiria toda uma comunidade (embora o episódio tenha acionado outras redes de solidariedade, pelo fato de ter ocorrido em uma noite de grande adesão da comunidade latina — que nos EUA se constitui em categoria étnico-racial).
Em momentos como este, é preciso desconstruir discursos abolicionistas recorrentes que colocam as boates gays como guetos ou locais de "proteção", e também as suposições apressadas, como a postulada pelo jornal El País dois dias depois da tragédia, que afirmam que, se houvesse aceitação e "normalidade" social, lugares como a Pulse não seriam necessários.
Engano: boates gays serão sempre necessárias, a despeito de uma maior aceitação ou não da sociedade com relação a expressões homoafetivas em público. Em artigo publicado nos Cadernos Pagu (ed. 29, 2007), a cientista social Isadora Lins França aponta como, desde meados da década de 1990, o que se conhecia como o “gueto” homossexual começou a se transformar num mercado mais sólido, composto por espaços freqüentados majoritariamente por homossexuais, revelando uma intenção de expandir as fronteiras do “gueto”. São territórios marcados por seus próprios códigos de comportamento, onde, de alguma forma, há um sentimento de “pertencimento” com relação ao espaço, onde as pessoas acreditam que ali estaria o grupo do qual deveriam fazer parte, pelo modo de se comportar, de se vestir, de falar umas com as outras.
"A Pulse era mais do que uma boate gay. A maioria dos espaços gays são mais do que espaços gays. Em meus tempos de faculdade em Orlando, eu não sabia como ser eu. A Pulse ajudou a me descobrir", afirmou uma frequentadora, assumindo o quanto a boate a ajudara a sair do closet e a abraçar sua identidade lésbica.
Muitos atribuem esse sentimento de potência e de auto-revelação gay, expresso pela frequentadora da Pulse, como um legado dos eventos ocorridos em junho de 1969. Mas a verdade é que o reino do segredo — ilustrado na figura do "armário" — não foi afetado por Stonewall, afirma a escritora Eve Kosofsky Sedgwick em A epistemologia do armário (2007) Segundo a teórica norte-americana de estudos de gênero e teoria queer, o “armário” nunca deixou de funcionar como um dispositivo de regulação da vida de gays e lésbicas.
"Mesmo num nível individual, até entre as pessoas mais assumidamente gays há pouquíssimas que não estejam no armário com alguém que seja pessoal, econômica ou institucionalmente importante para elas. O armário gay não é uma característica apenas das vidas de pessoas gays. Mas, para muitas delas, ainda é a característica fundamental da vida social, e há poucas pessoas gays, por mais corajosas e sinceras que sejam, por mais afortunadas pelo apoio de suas comunidades imediatas, em cujas vidas o armário não seja ainda uma presença formadora", destaca a autora.
É a possibilidade de saída do closet e alívio do segredo e do "controle" social, mesmo que momentâneo, que (ainda) torna espacialidades e territórios como a boate Pulse lugares especiais e importantes para gays, lésbicas, travestis e transexuais. Não que o armário diga respeito somente àqueles que vivem suas vidas amorosas em segredo por se relacionarem com pessoas do mesmo sexo. Ele também diz respeito àqueles que gozam do direito de vivê-las abertamente, na medida em que representa o meio de regulação que lhes garante este e outros privilégios, observa Sedgwick, coerente com a recusa dos teóricos dos estudos queer de focar em uma minoria. Mas, no caso homossexual, no armário raramente se constituem amizades, já que o segredo é sempre fator individualizante, um fardo que só se pode carregar sozinho, ressalta o pesquisador Richard Miskolci (UFSCar), em comentário sobre a obra de Sedgwick. As boates gays, por sua vez, coletivizam e socializam o segredo e o fardo. Subvertem a lógica do armário ao desafiar os dispositivos de regulação da vida social por meio da sexualidade e as estratégias discursivas que tentam definir a forma "correta" de agir e de compreender a si mesmo. Lá, aquele que um dia inexplicavelmente passou a sentir-se atraído por um professor, ou aquela que na adolescência apaixonou-se por uma amiga, percebem que não estão sozinhos, ao encontrarem-se com outras pessoas que também um dia experimentaram sentir o "amor que não ousa dizer seu nome", revelado no poema Dois Amores (1894) de Lorde Alfred Douglas.
Em todas as incursões etnográficas nesses espaços, o que fica evidente é que, nas relações que lá se formam, são reafirmadas lógicas de inclusão e, consequentemente, de pertencimento, pelo fato de seus frequentadores estarem inscritos e enredados dentro dos mesmos processos de regulação a partir da sua sexualidade, o que ajuda a compreender como certas coisas — como o massacre na Pulse ou a revolta de Stonewall — mobilizam e falam mais intimamente a determinados grupos e indivíduos que a outros.