CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

O trabalho doméstico na AL

por Pilar Pezoa, do Chile

Ao ter seu trabalho pobremente regulamentado, as empregadas domésticas estão expostas a extensas jornadas de trabalho, baixas remunerações, e à falta de direitos trabalhistas, como o acesso ao sistema público de saúde, possibilidades de uma pensão jubilada, férias remuneradas ou indenização. Em meio à precariedade laboral, a demanda por seus serviços vem aumento na América Latina e no mundo.

A Organização Internacional do Trabalho – OIT explica que os fatores do aumento desta demanda aludem à crise do modelo tradicional de cuidado, que se manifesta em uma menor oferta nos lares; à crescente participação da mulher na força de trabalho a nivel mundial; assim como à feminização da migração internacional. Outros aspectos que marcam esta tendência são o envelhecimento da população e a falta de políticas que harmonizem trabalho e família. A isto se soma o fato de o número de trabalhadoras do setor no mundo passou dos 100 milhões, das quais, cerca de 14% são latinoamericanas, cifra que segue crescendo.

Segundo a OIT, a vulnerabilidade do trabalho doméstico está vinculada, por um lado, à persistente subvalorização de atividades que concentram uma grande porcentagem de mulheres, e por outro, “às dificuldades na classificação do trabalho doméstico como uma atividade que gera uma relação trabalhista entre empregado e empregador”.

Reunida en Genebra em 16 de junho de 2011, a OIT adotou o Convênio 189 sobre Trabalho decente para as trabalhadoras e trabalhadores domésticos, que entrará em vigência em 5 de setembro deste ano. O acordo obriga os Estados que o ratificam a respeitar, promover e materializar os princípios e direitos trabalhistas: a liberdade sindical, o direito de negociação coletiva e a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação. Além disso, exige garantir uma jornada de trabalho em igualdade de condições com outras categorias, com descansos que lhes permita ter uma vida digna e em família.

Foram 179 países os que aprovaram a resolução, mas apenas a ratificaram até agora Bolivia, Filipinas, Itália, Maurício, Nicarágua e Uruguai, primeiro país a fazê-lo, em 14 de junho de 2012. Faltam 173.

Uruguai na vanguarda

No Uruguai, a história das empregadas domésticas teve uma mudança em 2005 com a criação do Sindicato Único de Trabalhadoras Domésticas – SUTD, que levou três anos para se consolidar. A cada 19 de agosto celebra-se no país o Dia da Empregada Doméstica, feriado para as trabalhadoras do setor. A data comemora a primeira vez que o Sindicato esteve presente em uma instância de participação coletiva (os Conselhos de Salários) que favoreceu a aprovação da lei 18.065 de 2008. A norma igualou suas condições de trabalho ao resto dos trabalhadores.

Cerca de 87 mil pessoas trabalham no serviço doméstico uruguaio. Um estudo do Centro de Economia Aplicada da Universidade de Montevidéu estima que 1 em cada 10 domicílios tenha iuma trabalhadora doméstica, das quais 99,2% são mulheres.

Com esta mudança legal, somado à entrada em vigor do Convênio 189, o Uruguai assume a liderança na região em matéria de respeito aos direitos e garantias trabalhistas para empregadas domésticas, com avanços significativos na duração da jornada de trabalho e horas de descanso.

O México também assinou o Convênio da OIT, mas assim como a Argentina, o Brasil, o Chile, a Colômbia e o Peru, ainda não o ratificou. No país, são mais de 2,2 milhões de pessoas que realizam um trabalho remunerado em casas particulares. A ratificação è um passo necessário para a entrada em vigor do Convênio. A legislação atual não lhes concede férias remuneradas, horas extras ou dias livres e uma ampla maioria não tem um contrato por escrito.

A campanha Ponte los guantes por los derechos de las trabajadoras del hogar busca pressionar o governo para a ratificação do Convênio e exige o reconhecimento dos mesmos direitos trabalhistas. Para Marcelina Bautista, promotora da campanha, diretora do Centro de Apoio e Capacitação para Empregadas Domésticas (CACEH, na sigla em espanhol) e secretária geral da Confederação Latinoamericana e do Caribe das Trabalhadoras Domésticas, o Convênio 189 “é um mecanismo para o respeito. Se não há direitos, não é emprego, se trata de exploração”, afirmou em recente entrevista aos meios locais. A dirigente criticou a resistência da sociedade mexicana de modificar a legislação sobre o tema, e assinalou a necessidade de uma mudança cultural que dignifique esta ocupação e que a veja como algo a mais que “quase escravas”.

No Brasil, Eliana Menezes, presidente do Sindicato de Trabalhadoras Domésticas de São Paulo, em recenté entrevista ao jornal Folha de São Paulo, comparou a recente aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional no Senado brasileiro, que melhora os direitos de trabalhadores domésticos, como “a segunda abolição da escravatura”.

A nova lei entrará em vigor ainda neste primeiro semestre. Beneficiará cerca de 7 milhões de trabalhadores domésticos, em sua ampla maioria composta por mulheres. Assim como no Uruguai, pela primeira vez no Brasil estas trabalhadoras terão direitos trabalhistas iguais aos de outras categorias.

A Emenda assegura que as empregadas domésticas possam cobrar horas extras se trabalharem mais de oito horas por dia, ou 44 horas na semana. A mudança legal permitirá que elas acumulem um fundo, pago por seus empregadores, equivalente a 8% de seu salário mensal, do qual elas ou sua família poderão dispor caso sejam despedidas, morram ou tenham outra contingência.

A pesar de os legisladores elogiarem a norma, qualificando-a de histórica, a medida tem despertado preocupação entre familias de classe média e alta, debido a um possível incremento nos honorários. Segundo dados do Instituto Nacional de Geografia e Estatísticas (IBGE), “o salário mínimo das empregadas domésticas deu um salto de 13% no ano passado, rítmo que duplica a inflação, e tem subido mais rápido que os de outras profissões na última década”. De acordo com a OIT, a população total de trabalhadores/as domésticos/as no Brasil é quase o dobro dos 3,6 milhões de pessoas que trabalham nesta ocupação nas nações desenvolvidas.

Chile: projeto com “urgência” no Senado

Seguindo a tendência mundial, a população de trabalhadoras domésticas chilenas tem crescido de forma significativa, registrando um aumento de 10% nos últimos 18 meses, de acordo com a Fundação Sol. O setor, altamente feminilizado (com cerca de 96% de mulheres), também está marcado pela precariedade e a informalidade. Este ano, 11,5% das mulheres ocupadas têm desempenhado este ofício, somando 360.000 trabalhadoras.

Na opinião de María Ester Feres, que assesorou a Coordenadoria de Trabalhadoras Domésticas em suas negociações com o Parlamento, “esta desproteção se vê acentuada pelas discriminações legais que as afetam”. A Coordenadoria é formada pela Associação Nacional de Empregadas Domésticas (ANECAP, na sigla original), a Fundação para a trabalhadora doméstica adulta maior “Margarita Pozo” e o Sindicato das Trabalhadoras Domésticas (SINTRACAP).

O Chile ratificou os três principais convênios igualitários da OIT: o Convênio 100, relativo à igualdade de remuneração entre a mão de obra masculina e a mão de obra feminina; o Convênio 111, que além de avançar em uma definição de discriminação a partir de uma qualificação objetiva ou de resultados, compromete os Estados que o ratificam a formular e levar a cabo uma política nacional a fim de eliminar toda forma de discriminação no laboral e ocupacional; e o Convênio 156, sobre trabalhadores e trabalhadoras com responsabilidades familiares.

María Ester Feres esclarece que, a pesar dos avanços, “a homologação da legislação chilena a seus conteúdos é exígua”, o que não implica desconsiderar avanços legislativos, como a equiparação do Ingresso Mínimo Mensal (Lei 20.281), a extensão da cobertura das normas de proteção à maternidade, logrados em grande parte ”pelas demandas persistentes das organizaçõess de trabalhadoras domésticas”.

Apesar de, seis meses após o Chile aprovar o Convênio 189 em Genebra, a Câmara de Deputados ter votado um projeto que solicita ao Presidente iniciar a ratificação, nada ainda aconteceu neste sentido. A respeito da fiscalização proposta no Convênio, o governo argumenta que não é adequado que se fiscalize as condições trabalhistas dos/as empregados/as domésticos/as, por seu trabalho ser realizado em ámbito privado.

Teresa Valdés, coordenadora do Observatório de Gêero e Equidade, que assessorou a Coordenadoria de Trabalhadoras Domésticas, coloca um dos motivos que atrasará o trâmite para este ano: “O ano eleitoral parece ser um cenário adverso para a validação, já que as mudanças que a ratificação do Convênio estabelece poderiam limitar a criação de empregos para as mulheres pobres”, afirma.

Ruth Olate, presidente do SINTRACAP, advoga pela ratificação do acordo por parte do Estado e pelo cumprimento de seus compromissos internacionais. “Sem esta plataforma é muito difícil que o governo do Chile se comprometa a avançar em gerar leis ou políticas que igualem os direitos de todas as trabalhadoras e na necessidade de fiscalizar os direitos existentes”, pontua.

A legislação que regula o trabalho das empregadas domésticas se encontra no Código do Trabalho e não contempla aspectos como feriados, maternidade, seguridade e saúde no trabalho, entre outros. Feres adverte que, “as trabalhadoras domésticas se encontram, por lei, excluidas do seguro de aposentadoria” e explica que existe “uma importante diferença com a legislaçãon comum que regula os tempos de trabalho e o descanso”.

Teresa Valdés espera que, enquanto o projeto não é votado, seja mantida a sensibilidade midiática sobre o tema e se dê visibilidade à reivindicação de entender o trabalho doméstico como uma atividad profissional e não “uma extensão das tarefas domésticas assignadas às mulheres”, conclui.

Brasil: fim da luta de classes?

O Brasil é o país com o maior número de empregados domésticos do mundo, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT). No início de abril, começou a vigorar no país a emenda constitucional – conhecida como PEC das domésticas – que estabeleceu um novo patamar jurídico para o emprego doméstico, estendendo à categoria, majoritariamente feminina (93% são mulheres), direitos trabalhistas até então indisponíveis.

As diretrizes representam um marco não apenas para as relações de trabalho, mas também para a sociedade brasileira como um todo, marcada por assimetrias de gênero que historicamente permeiam o mundo do trabalho e o ambiente familiar. Comumente associado ao universo feminino, o emprego doméstico só foi reconhecido como profissão pelo Estado brasileiro em 1972. A lei, no entanto, não contemplava plenamente os direitos previstos na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), dispositivo legal dos anos 1940 e que vigora até os dias atuais regulamentando as relações de trabalho através de uma atenção privilegiada à proteção do empregado. Nesse sentido, a CLT instituiu uma série de prerrogativas, algumas delas promovidas em atualizações posteriores, tais como jornada de trabalho fixa, salário-mínimo, hora-extra, férias, 13º salário, benefícios previdenciários, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), vale-refeição e vale-transporte, auxílio-doença, licença-maternidade entre outros.

Com a PEC, o trabalho doméstico entra plenamente no âmbito da CLT, embora alguns direitos dependam de regulamentação do Congresso, como o auxílio-desemprego, FGTS e auxílio-creche, o que demonstra a natureza sinuosa do processo diante de resistências. Na semana passada, o governo federal enviou ao Congresso sugestões para regulamentar alguns dos direitos.

De acordo com Clara Araújo, coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Desigualdades Contemporâneas e Relações de Gênero (Nuderg/UERJ), a PEC representa um marco simbólico importante para o país. “O não reconhecimento pleno, na Constituição de 1988, do trabalho doméstico colocava um status menor para o conjunto de atividades domésticas. Havia um pressuposto de que o trabalho no âmbito doméstico era inferior. O principal texto jurídico normativo do país espelhava uma visão desqualificante desse tipo de trabalho. A PEC sinaliza que o Brasil inicia o século XXI com um grande marco social e jurídico”, afirma.

Para Clara Araújo, a PEC é um avanço não apenas diante da precariedade das relações de trabalho. É possível, argumenta a cientista social, que haja algum impacto sobre a configuração dos arranjos familiares e das relações conjugais das classes empregadoras. “Não se pode afirmar com precisão o que acontecerá. No entanto, podemos supor que haverá mudanças na divisão do trabalho doméstico, podendo gerar conflitos entre os componentes das famílias. Afinal, isso atingirá os papeis de gênero na medida em que os homens serão mais acionados a se envolver na dinâmica doméstica”, observa. Segundo a socióloga, deve haver uma reorientação, especialmente na classe média. “Não acredito que seja uma mudança fácil, sendo possível também que haja um aumento de tarefas para as mulheres. É uma mudança histórica importante. Os impactos só poderão ser mensurados com mais precisão mais para frente. Em todo caso, acredito que haverá um impacto sobre os padrões e arranjos de gênero”, completa Clara Araújo.

Para a pesquisadora, a nova legislação sinaliza ainda uma potencial mudança em padrões culturais. “Mais até do que uma previsão legal, a PEC altera as formas de interação, concedendo mais status às domésticas e atingindo as relações de reciprocidade entre empregador e empregada. Podemos supor que haverá uma mudança na dinâmica das relações de poder. Antes da PEC, havia uma espécie de hierarquia dupla: a de empregado e empregador propriamente e aquela que diz respeito ao empregador como alguém que concede uma espécie de favor à doméstica. A PEC, nesse sentido, possibilita uma relação mais respeitosa, que atinge essa luta de classe manifesta de maneira subliminar”, argumenta Clara Araujo.

Angela Araujo, professora do Departamento de Ciências Políticas e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero (Pagu), da Unicamp, também acredita que haverá impacto nas relações familiares e no fortalecimento dos sindicatos das categorias. No entanto, ela lembra que avanços legais anteriores não necessariamente são correspondidos na prática cotidiana. “No governo Lula, por exemplo, a legislação passou a permitir que patrões que assinassem a carteira pudessem deduzir os gastos no Imposto de Renda. No entanto, o crescimento do número de carteiras assinadas não foi como esperado. Isso mostra que nem sempre, na prática, leis conseguem mudar as relações sociais”, afirma.

A aprovação da PEC gerou críticas na medida em que, de acordo com algumas vozes da sociedade civil, geraria desemprego às domésticas diante do custo que passam a representar às famílias empregadoras. De acordo com Angela Araujo, tal discurso espelha um ranço classista, conservador. “Há uma ideia enraizada historicamente de que famílias com boas condições precisam de uma criada, uma espécie de posse da família. Além disso, não podemos desvincular a reação a certa concepção flexível e desregulamentada das relações trabalhistas que tem vigorado nos últimos tempos. Criar direitos, assim, colide com certos preceitos em voga. Por isso, direitos como os das domésticas aparecem como se fossem privilégios, na boca de setores conservadores”, observa Angela Araujo, para quem a PEC pode, sim, representar um custo para famílias de classe média. “Isso não significa que se deva questionar tais direitos. As famílias empregadoras sem condições de manter uma doméstica terão que se rearranjar internamente”, completa.

Nas famílias das domésticas, destaca Clara Araujo (Nuderg/UERJ), é possível vislumbrar um efeito positivo ante a tendência de redução da carga de trabalho fora de casa. “Isso abre uma porta para que as domésticas tenham mais tempo para seus lares. E abre as portas também para que elas aumentem suas rendas”. Sobre as críticas à PEC, Clara Araujo afirma que não acredita que haverá uma onda de desemprego na categoria.

“Acho que pode haver um crescimento do empresariamento, com agências mediando as partes. Será preciso observar como esse empresariamente se dará. Isso me leva a outra questão: o reconhecimento dos direitos forçará inevitavelmente o Estado a pensar em políticas públicas de suporte para balancear as relações entre empregador e empregada. Como ficará a questão das creches? Como pensar a questão dos aparelhos domésticos que auxiliam nas tarefas? São desafios que o poder público acabará tendo que enfrentar”, conclui Clara Araújo.

* Tradução de Washington Castilhos