Washington Castilhos
Fábio Grotz
Atrás do balcão de uma locadora de filmes, uma das atendentes comentava em voz baixa à colega de trabalho que não sabia com que roupa iria a uma festa no fim de semana. Um cliente da loja, aparentando não mais que 25 anos e acompanhado de amigos da mesma idade, e sem ter a menor intimidade com a moça, interpelou, para fazer piada para os outros rapazes: “Não seria mal se você fosse pelada”. O teor machista e grosseiro de tal comentário, corriqueiro em nossa sociedade, também aparece, embora em diferentes matizes, em frases do tipo “Qual de vocês que é casado que nunca brigou com a mulher? Que não discutiu ou até saiu na mão com a mulher? Não tem jeito. Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, dita pelo goleiro Bruno Fernandes ao tentar “desculpar” a violência de outro jogador de seu clube de futebol contra a namorada, em março deste ano – ironicamente, a frase foi dita na semana do dia internacional da mulher. Bruno, todos sabem, encontra-se preso acusado de ordenar matar uma ex-amante, a jovem Eliza Samudio, por não querer reconhecer a paternidade de um filho. A morte de Eliza tem, aliás, gerado um outro comentário por parte de alguns homens: o de que “ela não era propriamente uma santinha”. Em todas as frases citadas acima estão presentes a banalização do corpo feminino e a construção social da mulher como objeto, além da lógica da naturalização da violência na relação íntima, implícita na frase do jogador.
Eliza Samudio é uma das mais de 40 mil mulheres assassinadas nos últimos dez anos no Brasil, de acordo com um levantamento feito pelo Instituto Zangari, com base no banco de dados do Sistema Único de Saúde (Datasus), que dá conta de que dez mulheres são mortas por dia no país – um índice de 4,2 assassinadas por 100 mil habitantes. Elas morrem em número e proporção bem mais baixos do que os homens (92% das vítimas), mas o nível de assassinato feminino no Brasil fica acima do padrão internacional, em comparação às taxas da maioria dos países europeus, por exemplo, cujos índices não ultrapassam 0,5 caso por 100 mil habitantes – na França, atualmente, uma mulher morre a cada dois dias, assassinada pelo parceiro, o suficiente para causar alarme no país. Por outro lado, o Brasil fica ainda abaixo de nações que lideram a lista, como África do Sul (25 por 100 mil habitantes) e Colômbia (7,8 por 100 mil).
Os números do estudo do Instituto Zangari não detalham as motivações. Sem generalizações, de modo geral, há uma tendência a que os assassinatos de mulheres se dêem num contexto de violência doméstica, sobretudo no momento da separação de casais. Mas não há dúvida de que o machismo esteja presente como um dos elementos propulsores de crimes como o do goleiro Bruno, ou ainda, como o assassinato da advogada paulista Mércia Nakashima, supostamente morta por ciúmes pelo ex-namorado, por esta ter terminado o romance. No entanto, segundo especialistas, seria muito simplório estabelecer uma relação causal entre um assassinato, sobretudo um assassinato cercado de barbaridades, como o de Eliza (e de tantos outros que a mídia nem chega a noticiar) e o machismo.
“O machismo está subjacente na nossa cultura, mas a maior parte dos homens não agride nem mata suas companheiras. O machismo não pode ser, portanto, a única fonte explicativa. No máximo, os valores machistas se prestam como repertório justificador para a violência praticada por certos homens, num contexto de múltiplas causalidades. Há estudos, nos Estados Unidos, que mostram não haver relação entre ter concepções machistas ou ser economicamente dominante no casal e agredir a mulher. O problema é que quando uma mulher é agredida ou morta, parece que qualquer outra causalidade perde o sentido e tudo fica resumido à dimensão de gênero. Essa dimensão é importante, é fundamental, mas é uma entre outras. De outro modo, estaríamos num mundo bidimensional, que não corresponde à complexidade e às dinâmicas da experiência humana. A violência tem múltiplas causas, de natureza individual, relacional, familiar, comunitária, social, cultural etc., e elas estão interligadas . O assassinato, a violência e a crueldade envolvem certamente muitas variáveis”, avalia a socióloga Bárbara Soares, pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC/UCAM) e ex-subsecretária de Segurança da Mulher do governo do Estado Rio de Janeiro.
Sobre a afirmação do goleiro Bruno citada acima – o que, em outras palavras quer dizer que qualquer homem casado sabe que em algum momento baterá em sua companheira – na opinião de Bárbara ele simplesmente repete velhos chavões machistas.
“Isso não significa, entretanto, que todos os machistas matem mulheres. Portanto, parece que ele se utiliza de um repertório e de uma linguagem que ainda estão disponíveis, lamentavelmente, para dar sentido e justificar suas ações. Mas não devemos deduzir daí que o machismo, por si só, induz à violência ou à crueldade. É preciso haver outros componentes, outras variáveis, individuais e coletivas, para que a violência seja posta em prática. A dinâmica das experiências humanas é complexa e não pode ser reduzida a um conjunto de causalidades unilaterais”, sustenta.
Entre tais variáveis encontra-se a nossa cultura patriarcal machista, ressaltada no artigo de opinião “Patriarcado da violência”, da pesquisadora Débora Diniz (UnB), publicado na edição de 10 de julho do jornal O Estado de São Paulo. “O modelo patriarcal é uma das explicações para o fenômeno da violência contra a mulher, pois a reduz a objeto de posse e prazer dos homens”, salienta o artigo. No entanto, para Bárbara Soares, “isso não pode nos impedir de ver os outros problemas associados às práticas violentas. Problemas de natureza psíquica (basta ver o enorme percentual de homens que matam suas mulheres e se suicidam em seguida), culturas específicas de violência em que ocorrem as interações de todos os tipos, uma cultura circundante que perversamente estimula a visibilidade a qualquer custo, assim como as relações utilitárias e predatórias”.
Para a socióloga Aparecida Moraes, o que chama a atenção em crimes como o de Eliza e de Mércia Nakashima é a maneira como a violência vem sendo radicalizada. “Na medida em que as questões feministas avançam e as mulheres acessam o discurso do direito sobre seus corpos, este tipo de violência parece ser uma resposta machista radical a essas mudanças. Quando um homem mata uma mulher por esta romper um namoro, existe aí a demonstração de que não há negociação possível. É como se os homens dissessem: ‘Não vou negociar uma relação mais democrática’. Então, resolve-se na base da violência física. O crime passional renasce como prática social. Deixou de ser uma justificativa jurídica aceitável nos Tribunais e passou a ser uma prática social. Os homens não querem negociar o amor. Esta resposta de radicalização faz parte das experiências de mudanças”, diz ela.
Para Débora Diniz, “outra hipótese de compreensão do fenômeno é a persistência da impunidade à violência de gênero” (Estado de São Paulo, ed. 10/07/2010). Como no caso da jornalista Sandra Gomide, assassinada em 20 de agosto de 2000 pelo ex-namorado e também jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves que, dez anos após o crime, continua livre, pelos mesmos motivos que muitos criminosos do colarinho branco continuam sem punição: a imensa desigualdade de poder e de acesso à justiça.
Uma morte anunciada
Seis anos depois da morte de Sandra Gomide, a aprovação da Lei Maria da Penha (11.340/06), em 2006, foi comemorada pelas entidades feministas por incentivar as mulheres a denunciar crimes de violência doméstica, trazer o problema da violência conjugal à luz do dia, ajudar a romper com a lógica da naturalização da violência na relação íntima e comprometer toda a sociedade no enfrentamento do problema, além de garantir medidas protetivas para a mulher e punições mais duras e rápidas contra os agressores. No entanto, surgiram divergências acerca da sua constitucionalidade. Aqueles que sustentam a inconstitucionalidade, apesar de serem minoria, afirmam que a lei fere o princípio da isonomia, na medida em que estabelece uma desigualdade somente em função do sexo. A mulher vítima seria beneficiada por melhores mecanismos de proteção e de punição contra o agressor. Já o homem não disporia de tais instrumentos quando fosse vítima da violência doméstica ou familiar. Há inclusive uma Ação no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a constitucionalidade da Lei.
Por conta disso, a lei está sujeita a interpretações, muitas vezes equivocadas, de magistrados e operadores de Direito. Foi o que aconteceu no caso do goleiro Bruno: em outubro de 2009, Eliza, grávida de cinco meses, deu queixa afirmando ter sido mantida em cárcere privado e obrigada pelo jogador a ingerir substâncias abortivas. O 3º Juizado de Violência Doméstica do Rio de Janeiro negou o pedido de proteção a Eliza, por considerar que a jovem não mantinha relações afetivas com o goleiro. A juíza Ana Paula Delduque Migueis Laviola de Freitas explicou em sua decisão que Eliza não poderia se beneficiar das medidas protetivas, nem “tentar punir o agressor”, sob pena de banalizar a Lei Maria da Penha. A magistrada entendeu que a finalidade da legislação é proteger a família, seja proveniente de união estável ou de casamento e não de uma relação puramente de caráter eventual e sexual. O resultado do não cumprimento à Lei e da não proteção à Eliza todos agora conhecem.
Esta semana, às vésperas da Lei Maria da Penha completar quatro anos de existência, em nota oficial enviada à imprensa, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) lembra que o “artigo 5°, inciso III da Lei Maria da Penha caracteriza como violência doméstica ‘qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independente de coabitação’. A legislação não estipula o tempo da relação, porque a violência doméstica e familiar contra a mulher se configura por meio de qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, além de dano moral ou patrimonial. Qualquer relacionamento amoroso, portanto, pode terminar em processo judicial com aplicação da Lei Maria da Penha, se envolver violência doméstica e familiar contra a mulher e violar os direitos humanos”.
A Lei também não impediu o assassinato da cabeleireira Maria Islaine de Morais, morta em janeiro deste ano pelo ex-marido, diante das câmeras instaladas propositalmente por ela em seu salão, depois de fazer, em vão, oito denúncias contra ele por ameaças.
“A política pública está reclassificando o que é violência. Hoje as mulheres estão aprendendo a denunciar. Mas ela denuncia e fica exposta por que a política pública não se consolidou. A mulher deveria encontrar nos equipamentos do estado proteção para levar adiante o processo de publicização de sua denúncia. Quando procura a proteção do Estado, este precisa saber o que fazer”, observa Aparecida Moraes.
“Eu não estava lá”
Para Bárbara Soares, um aspecto que precisa ser melhor explorado diz respeito à prevenção. “Precisamos refinar a capacidade de prever e evitar novos crimes sem, no entanto, considerar, como querem alguns, que todo homem que agride sua mulher é um potencial assassino. Entretanto, nossos instrumentos de avaliação de risco ainda são muito precários, já que temos apostado muito mais na punição do que na prevenção”, salienta.
Na análise da socióloga, o caminho a ser percorrido seria justamente o de enfatizar a prevenção. “Não apenas no sentido de uma educação formal menos machista, o que sem dúvida é fundamental, mas no sentido de desarmar a díade masculinidade-violência. Tanto para reduzir as mortes de mulheres, como também para diminuir as mortes entre jovens do sexo masculino, que são os que mais matam e os que mais morrem. Nessas mortes há também um componente de gênero que costumamos desconsiderar. A desconstrução do masculino associado à violência requer um processo reflexivo e um novo diálogo entre homens e entre homens e mulheres”.
Para ela, os grupos reflexivos são um bom recurso para o desenvolvimento desse processo, não apenas no sentido de estimular a reflexão nos grupos de homens que agrediram suas mulheres, como já prevê a Lei Maria da Penha, mas de favorecer a formação de grupos de jovens que estão estruturando suas masculinidades, para que estes tenham a chance de trilhar um caminho alternativo. “Trata-se também, de criar novos canais de escuta, a partir dos quais homens e mulheres, autores e vítimas de agressões possam se ouvir mutuamente. A partir dos quais os homens possam ouvir outras mulheres agredidas (que não aquelas agredidas por eles, evidentemente). A partir dos quais os homens se ouçam a si mesmos e ouçam outros homens perpetradores de violência. Bem conduzidos, esses processos podem ser realmente transformadores. A mera punição não tem nenhum caráter pedagógico para o próprio agressor. No máximo ela pode ter um efeito social inibidor. Precisamos nos perguntar se queremos simplesmente punir, para vingar a violência, ou se queremos de fato transformar os comportamentos”, questiona Bárbara.
O fato é, mesmo não sendo a violência constitutiva da natureza masculina, casos de agressão e morte contra mulheres têm se multiplicado no Brasil. Na semana passada foi divulgado na internet o caso de estupro de uma jovem de 13 anos por dois rapazes, ambos menores de idade. Medicada num hospital, a menina deu queixa à polícia e submeteu-se a um exame de corpo de delito. Além do dono do apartamento – um jovem de 14 anos filho de Sérgio Sirotsky, diretor do Grupo RBS de comunicação em Santa Catarina, empresa que controla 46 emissoras de televisão e rádio e oito jornais diários no Sul do país – ela denunciou também o filho de um delegado. Em sua coluna semanal no jornal Folha de São Paulo, o jornalista Élio Gáspari realça a declaração do delegado Nivaldo Rodrigues, diretor da Polícia Civil de Florianópolis, que, numa entrevista gravada, teria dito o seguinte: “Eu não posso dizer que houve estupro. Houve conjunção carnal. Houve o ato. Agora, se foi consentido ou não, se foi na marra, ou não, eu não posso fazer esse comentário, porque eu não estava presente” . Mais um exemplo de repertório machista que ainda se reproduz em nossa sociedade. Segundo Gáspari, “a declaração do delegado é uma repetição da protofonia das operetas que começam investigando casos de estupro e terminam desgraçando quem os denuncia”. (Clique aqui e leia o texto na íntegra)
Assim com Eliza Samudio, na ótica machista, a jovem de Florianópolis passa de vítima a ré. Assim como diz Gáspari: “Reapareceu a teoria segundo a qual não existe estupro, existem mulheres mal comportadas”.