CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Universo pouco conhecido

Estupros dentro de cadeias sempre aconteceram no Brasil. No entanto, ressaltam os especialistas, o caso da menina de 15 anos mantida presa em uma cela com 20 homens por quase um mês, na cidade de Abaetetuba, Pará, tornou-se revelador de uma situação recorrente. “Essa situação ultrapassou uma fronteira e trouxe à tona o drama da violência sexual no cárcere. As mulheres sempre estiveram à mercê dos agentes do sistema penal e os homens, como já é fato conhecido, muitas vezes são estuprados pelos outros presos quando chegam nas cadeias. Lamentavelmente esta é uma prática antiga”, analisa a socióloga Bárbara Musumeci Soares, coordenadora da área de Segurança Pública e Gênero do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CeSeC), da Universidade Cândido Mendes.

No final de 1999, Bárbara e a advogada Iara Ilgenfritz iniciaram uma pesquisa junto às mulheres encarceradas no Rio de Janeiro, quando ambas compunham a equipe da então Subsecretaria de Pesquisa e Cidadania, da Secretaria de Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro. A intenção do estudo era conhecer a situação das mulheres encarceradas e, a partir das informações coletadas, sugerir uma nova política penitenciária para as mulheres presas no estado. O levantamento, do qual resultou o livro “Prisioneiras: vida e violência atrás das grades” (publicado em 2002, pela editora Garamond), foi feito com 85% da população feminina prisionária da época e revelou que 95% destas mulheres já haviam sofrido todos os tipos de violência na infância, no casamento ou nas mãos da polícia, e 35% sofreram nas três situações.

Para Bárbara, ainda há pouca informação sobre a população carcerária feminina. “Como elas representam menos de 10%, acabam ficando na invisibilidade. O episodio ocorrido no Pará reflete este mundo invisível da população carcerária feminina”, avalia.

A socióloga observa que, apesar de serem minoria, as detentas requerem demandas específicas. “As mulheres encarceradas têm direitos e merecem cuidados e políticas especiais. Elas devem estar sob a custódia do Estado em condições que respeitam suas necessidades”, afirma.

Segundo a advogada Luciana Zaffalon, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, de São Paulo, o caso do Pará mostra mais um sintoma da discriminação de gênero no sistema carcerário. “A sexualidade da mulher é desrespeitada em vários momentos. Na maior parte das penitenciárias femininas não tem visita íntima, o que para os homens acontece há mais de 20 anos. Elas têm direito, mas não têm acesso a ginecologista ou a exames que detectam o câncer de colo do útero, por exemplo. Elas não têm sequer acesso a absorvente íntimo, passam o mês todo juntando miolo de pão”, revela.

As violações dos direitos das mulheres no sistema prisional brasileiro já vêm sendo denunciadas há muito tempo, segundo a advogada. “Mas o tema é tratado como se não tivesse importância. Há registros de casos de violações de mulheres por agentes penitenciários e de mulheres que engravidam ao dividir a cela com adolescentes em diversos estados, não só no norte do país”, conta Luciana.

Em 2006, a advogada realizou uma pesquisa com detentas em São Paulo através do programa GRAL – Gênero, Reprodução, Ação e Liderança, coordenado pela Fundação Carlos Chagas e a organização feminista SOS Corpo. O objetivo era investigar as políticas publicas existentes para a população feminina carcerária, considerando a questão de gênero no universo penitenciário. Com a pesquisa, a advogada constatou que diversos direitos das mulheres são violados. “Faltam postos de trabalho e o acesso à educação. A amamentação no cárcere também é outra questão: não existe no país uma regulação que determine quanto tempo a criança deve ficar com a mãe quando esta está presa. A superlotação dos presídios é outro problema: em Recife, presenciei situações caóticas de bebês com dias sendo amamentados pelas mães no chão da prisão. Falta estrutura penitenciária”, afirma.

De fato, as autoridades policiais que colocaram a jovem na cela com 20 homens disseram que não havia uma ala feminina no presídio de Abaetetuba. Membro do Grupo de Trabalho Interministerial formado em março deste ano para repensar políticas para as mulheres presas, Luciana acredita que uma política publica carcerária possa se iniciar pela melhoria do sistema carcerário feminino a curto prazo para que, dando certo, esta política possa ser levada a todos os presos. “Com a melhora desse sistema específico, conseguiremos replicar isso em todo o universo carcerário, inclusive no masculino. A carceragem feminina é um universo perfeitamente trabalhável”, salienta.

Segundo Luciana, os espaços físicos destinados às mulheres são sempre reaproveitados e não são adaptados a elas, quando reformados. “Na penitenciária de Santana, em São Paulo, há 3 mil mulheres. Quando era ocupada por homens havia uma área para cinema, hortas e quadras poliesportivas. Esta área foi desativada, como se a mulher não fizesse jus ao lazer e ao esporte”, critica.

Para a advogada, o acesso à justiça também é outra questão. “As mulheres representam entre 4 e 6 % do sistema carcerário. Em alguns estados chegam a 10%, mas acabam entrando no rol de processo de 100% da população total de 200 mil processos. Isto gera um atraso terrível. A assistência jurídica deveria alcançar a vara de família, porque essas mulheres têm família e crianças. A maioria são negras, pobres e arrimos da família. Suas prisões não trazem reflexos somente na sua vida e sim em toda a sua família”, avalia Luciana.

Bárbara Musumeci chama a atenção ainda para outro fato intrínseco ao caso acontecido no Pará: “A Lei de Execuções Penais não é cumprida. A moça foi presa por suspeita de furto, crime que pode ser revertido a penas alternativas. Além disso, sempre há uma tendência a transferir a culpa para quem é a vitima. A mulher é culpada por que foi estuprada, por exemplo”, avalia a socióloga.

A pesquisadora tem razão. Responsável por investigar a atuação dos policiais no caso, a delegada corregedora Liane Martins minimizou a culpa dos policiais e jogou a responsabilidade para a própria garota. “A todos os delegados ela se apresentava como maior de idade. Não acredito que eles estejam mentindo. São pessoas que têm formação”, disse ela em entrevista ao jornal Folha de São Paulo. A corregedora afirmou que os delegados foram “levados ao erro” pela adolescente, por isso, disse ela, não haveria motivos suficientes para a demissão dos policiais. “Eles têm responsabilidade, alguma negligência houve, mas não é o caso de demissão. Até o momento, não”.

Caso encobre uma teia mais densa, segundo antropóloga

A antropóloga Adriana Vianna, professora do Museu Nacional (UFRJ), comenta a proteção especial à infância e à juventude a despeito da ruptura de outros direitos básicos envolvidos no caso. “Quando as primeiras manchetes de jornais denunciaram o fato, o elemento mais destacado foi o absurdo de uma menina, menor de idade, ter sido mantida em meio a vinte homens na cela da delegacia. O absurdo configurou-se, portanto, na junção entre idade e gênero, sendo o primeiro desses fatores a base de toda uma legislação específica”.

Após a denúncia e a conseqüente repercussão do caso, o superintendente da Polícia Civil em Abaetetuba, Fernando Cunha, alegou que não sabia que a jovem era menor de idade. “Se ela dissesse que era menor, seria dado um outro procedimento”, afirmou ele aos jornais na época.

Adriana Vianna analisa: “A menoridade da menina – ou as discussões a partir dela – propiciaram, então, essa fagulha, esse dado dissonante que aponta diretamente para um terreno de valores contemporâneos e sagrados: a ‘infância’. Por ser menor de idade, ela não poderia estar presa, não poderia ser alvo de violências sexuais”.

Em seguida, segundo a pesquisadora, completam o quadro os dados de gênero: nenhuma mulher poderia ser mantida nessa situação. “Dispostas, então, em uma seqüência hierárquica de vítimas, aparecem meninas e, em seguida, mulheres. O que tal seqüência encobre, porém, é a naturalização das próprias dinâmicas ordinárias de violência sexual e, de modo mais amplo, de violência entre os presos e sobre os presos. Sem querer de modo algum minimizar os componentes específicos das violações sofridas por meninos e meninas em meio à sua menoridade (e por causa dela) ou das sofridas por mulheres, o que talvez mais me incomode nesse caso seja o quanto os termos da indignação social provocada por ele pautem-se pela dinâmica da singularidade e da exceção. No máximo, os debates parecem avançar na direção da crescente denúncia de casos semelhantes, sem colocar em questão a teia mais densa de ‘castigos’ que enreda presos e presas independente de suas idades”, analisa.