No dia 08 de janeiro os jornais publicaram uma decisão inédita na Justiça brasileira: um feto de sete meses foi aceito como autor de uma ação penal no estado de São Paulo. A ação buscava garantir a remoção de oito presas da cadeia pública de São Bernardo do Campo, onde cumprem pena, para que pudessem ter o acompanhamento gestacional adequado. O local foi planejado para abrigar 32 presas, mas hoje aloja 130 mulheres, oito delas grávidas.
O defensor Marcelo Carneiro Novaes comemorou a decisão como mais uma ferramenta útil na defesa dos direitos das encarceradas. A OAB de São Paulo disse que o Tribunal de Justiça abriu um precedente que poderá beneficiar outras mães. Na alegação, Novaes escreveu: “O nascituro, ou feto, postula a imediata remoção da gestante, sua mãe, da cadeia pública para avaliação médica e acompanhamento pré e perinatal, previstos no artigo 8º do Estatuto da Criança e do Adolescente”. Os desembargadores decidiram positivamente: “Pode o feto, devidamente representado, desde o momento da concepção, ainda que desprovido de personalidade jurídica, pleitear judicialmente seus direitos”.
Novaes utilizou os fetos nas ações porque o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tem definições claras de proteção legal à criança, o que daria maior chance de vitória à ação. A alegação foi feita baseada no entendimento que a criança é a principal beneficiada com o pré-natal bem-feito.
A jornalista Telia Negrão, mestre em Ciência Política (UFRGS) e especialista em Gestão Pública Participativa (UERGS) coordenou, entre 2004 e 2006, com Aparecida Luz Fernandes, a pesquisa denominada “Vida, Saúde e Sexualidade das Mulheres do Sistema Prisional”, que entrevistou todas as mulheres em regime semi-aberto da Casa Albergue Feminino de Porto Alegre e as presas em regime fechado da Penitenciária Madre Pelletier. O estudo do Coletivo Feminino Plural, feito em parceria com o Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Mulher e Gênero da UFRGS, revelou a destituição do corpo das mulheres em prisões, registrando uma elevada vulnerabilidade às doenças sexualmente transmissíveis, ao HIV e à Aids, além de adoecimento psíquico não diagnosticado e tratado, e dependência química.
Telia explica, nesta entrevista, por que esse precedente não tem razões para comemorações, mas sim para preocupações.
Por que esta decisão judicial é preocupante?
É uma preliminar deste debate reafirmar o inalienável direito das mulheres presas/encarceradas à atenção integral à sua saúde, em especial à saúde sexual e reprodutiva. A Rede Feminista de Saúde tem manifestado seguidamente em suas agendas a necessidade de focar as diversidades para incluir as mulheres presas no contexto do acesso à saúde, e eu pessoalmente, através de minha organização, o Coletivo Feminino Plural, desenvolvo há quase dez anos um trabalho específico neste tema. Os projetos denominados “A Um Passo da Liberdade” e “O Tempo não pára” junto ao sistema prisional feminino gaúcho encaminhou no final do ano passado à Plataforma Dhesca, ao Ministério Público e aos Conselhos de Saúde a denúncia do descaso com a saúde de mulheres privadas de liberdade. É degradante a experiência vivida por essas mulheres nas prisões brasileiras e de violação aos direitos humanos fundamentais, não cumprindo nenhum dos compromissos internacionais, como as Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação entre as Mulheres (CEDAW), quando trata de mulheres em situação especial, nem a Plataforma do Cairo.
Como está registrado num relatório das Américas Watch “aqui nos tratam como animais”. Tenho dúvidas. Acho que animais são melhor tratados quando se conhece a vida nas galerias das casas prisionais. Ademais, é recente no Brasil a existência de uma Política Nacional de Saúde para o Sistema Prisional, coordenada pelo Ministério da Justiça. A Área Técnica da Saúde da Mulher, na gestão de Mazé Araújo, incluiu as mulheres em privação de liberdade entre os públicos a serem incluídos na atenção integral. Segundo o Plano do Ministério da Justiça, hoje em implantação em dez estados, devem ser instaladas equipes multi-profissionais de saúde em cada casa prisional, para garantir a atenção básica, ações de saúde da mulher e insumos para proteção às DSTs, Hiv, Aids, anticoncepção, citopatológico etc, facilitando o acesso das mulheres ao SUS. O problema é que há milhares de mulheres esperando julgamento, em situação irregular e cumprindo penas maiores do que suas condenações, com direito à progressão no regime sem poder exercê-lo porque não há casas prisionais femininas, nem uma política restaurativa.
As mulheres eram cerca de 3% da população prisional brasileira, mas este número dobrou em três anos, o que agravou o quadro de superlotação e por conseqüência, violência institucional nos presídios femininos. Para dar tratamento eqüitativo às mulheres, mesmo em privação de liberdade, há iniciativas de organizações da sociedade civil de dar voz a essas mulheres, e na eleição de 2006 as não condenadas puderam inclusive votar em algumas capitais brasileiras.
A recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo estende ao feto os mesmos direitos de uma criança. O que isso significa realmente?
Essa é uma discussão que nos leva à origem do debate sobre o aborto no período da Constituinte no Brasil, o final dos anos 80, quando, para evitar que se aprovasse a defesa da vida desde a concepção, o movimento de mulheres decidiu recuar na luta pela discriminalização do aborto. Isso tem sido uma constante ameaça, pois deflagra uma discussão sem fim sobre o início da vida, sobre o momento da concepção, sobre o momento em que o feto se torna viável. Esses argumentos foram muito debatidos durante o trabalho na Comissão Tripartite que elaborou o Anteprojeto de Lei para Revisão da Legislação Restritiva e Punitiva ao Aborto, protocolada em 28 de setembro de 2005 na Câmara Federal, e que ficou parada na Comissão de Seguridade Social. Quando dessa Comissão, um dos argumentos presentes era sobre o direito proporcional, ou seja, quanto mais maduro o feto, menor o direito da mulher de abortar. Um debate no meu ponto de vista bastante relevante, pois reafirma o posicionamento do feminismo em favor da vida. O que não se pode, a título de defesa do direito da mulher ao pré-natal, que é uma ação de saúde indispensável para reduzir a mortalidade materna e neonatal, extirpá-la do contexto da cidadania.
Como se sabe, ao ser condenada, uma pessoa no Brasil perde um conjunto de direitos: o poder familiar, o direito de votar e ser votada, e o direito fundamental de ir e vir. O espírito da execução penal é a reeducação pelo cerceamento da liberdade. Mas, na realidade, é muito mais do que isso. Tornar-se um detido, preso ou condenado é ser destituído da condição humana, tal a gravidade do contexto prisional. No momento em que um feto, ainda no ventre da gestante, passa a ser o sujeito de direitos, significa que a mulher não é mais sujeito. É a decretação da total invisibilidade à mulher, em favor de outro que dela depende integralmente para sobreviver. Num contexto de disputa de agenda sobre direitos sexuais e direitos reprodutivos, a decisão da Justiça paulista me parece completamente equivocada, o que favorece setores fundamentalistas.
Por que este fato pode representar um retrocesso?
Porque tem-se implementado uma enorme luta para a defesa do direito das mulheres de decidirem sobre suas vidas, o que implica no exercício de direitos reprodutivos e sexuais como partes inseparáveis dos direitos humanos. Os pequenos avanços obtidos nos últimos anos, com o debate na sociedade, com as pesquisas de opinião promovidas pelas Católicas pelo Direito de Decidir demonstram a sociedade brasileira mais aberta para esta discussão. Isso se torna nulo ao se dar prioridade ao feto no exercício de direitos. Exemplifico com o conhecido caso da menina da cidade de Bagé, município gaúcho, que em 2005, através de seus pais, ingressou na Justiça solicitando a interrupção da gravidez.
Com 13 anos, violada por um homem quase trinta anos mais velho, era direito líquido e certo, mesmo porque havia presunção de violência em função da sua idade, menor de 14 anos. Além da dificuldade de encontrar profissionais, que alegavam objeção de consciência para realizar o procedimento médico, uma promotora do Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul ingressou com hábeas corpus em nome do nascituro. A menina foi impedida de realizar o abortamento previsto no Código Penal, e só não teve o bebê fruto de estupro por ter sofrido um aborto espontâneo. Não há nenhuma dúvida, neste caso concreto, de quem era o sujeito de direitos, ou havia? Mesmo assim o MP agiu contra a menina, filha de classe média rural, que pagara advogado para ingressar na Justiça. Imaginem no caso das presas, já destituídas de valor na sociedade…creio que temos de estar atentas para que não se caia em comemorações sobre o surgimento de novos sujeitos de direitos no Brasil, que no fundo reforçam posições retrógradas da Igreja Católica e de Evangélicos Conservadores.
O que está havendo é uma diferença de peso nos direitos de mãe e feto?
Exato! Porque não há propriamente perda de direitos quando outros sujeitos são incluídos na cidadania. Este debate, levado à origem da discussão sobre a igualdade de direitos entre os sexos, foi muito rico, mas acabou por demonstrar é que se reduzem privilégios e poderes quando alguém é trazido para a órbita do direito. A questão está, portanto, em fazer do nascituro, que é representado pela sua gestante (ainda não é sua mãe) ou pelo seu futuro pai (que participou do processo reprodutivo) um cidadão que parece ter mais direitos do que a mulher que o gera. Isso nos remete à ideologia predominante ainda na nossa sociedade, de que os fetos têm mais valor do que as pessoas que os geram, as mulheres, fato que o legislador resolveu em 1940, no Código Penal, quando trata da prioridade da vida da gestante frente ao risco de vida.
No entanto, as políticas de saúde prevalentes ao longo do último século são materno-infantis, focadas no bebê e ainda hoje prevalece essa concepção em nível regional e local. Há programas de pré-natal alocados em área de saúde do bebê e não da mulher, o que mantém o equívoco e visão reducionista da saúde da mulher como reprodutora, e não enquanto um ser integral. Quando o movimento de mulheres defende a integralidade, a equidade, a universalidade na saúde, está reafirmando o direito de cidadania das mulheres de decidir sobre quando, como, em que circunstância etc, ter ou não ter filhos, como parte de suas prerrogativas.
Os desembargadores alegaram que o feto pode, “devidamente representado, desde o momento da concepção, ainda que desprovido de personalidade juridica pleitear juridicamente seus direitos.” Que conseqüências isso pode trazer?
Não sou especialista na área jurídica, mas o que se pode prever é que este episódio pode fortalecer posições conservadoras que estão ganhando mais visibilidade devido à vinda do Papa ao Brasil, e obrigando a um recuo no debate sobre o aborto no Congresso Nacional. Recentemente tivemos o caso da Nicarágua, em que uma lei de interrupção da gravidez com mais de cem anos foi revogada pelo Congresso, para agradar a hierarquia da igreja católica. No Chile está sendo feita uma consulta sobre a legislação do aborto e, em vez de divulgar seus resultados, se está escondendo. Será que se prepara um presente para a vinda do Papa em maio, do tamanho da América Latina? Há uma onda conservadora rondando o mundo, que não combina com os avanços nos costumes, no exercício pela sexualidade pelos jovens, que precisa ser observado. Este caso em São Paulo deve nos permitir fazer conexões políticas necessárias, para que não pareça algo isolado.
Telia Negrão, 52 anos, é jornalista e mestre em Ciência Política (UFRGS) e especialista em Gestão Pública Participativa (UERGS). Secretária Executiva da Rede Feminista de Saúde para o período de 2006-2010. Ex-coordenadora do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre. É relatora da Sociedade Civil para o Informe Alternativo junto ao Comitê CEDAW em 2003 e 2006/2007. Pesquisadora vinculada ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Mulher e Gênero da UFRGS, com inúmeros artigos sobre temática de Redes Sociais e Cibernéticas, Políticas Públicas nas áreas de Violência, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, Feminismo e Gênero.