Resultados da pesquisa Política, Direitos, Violência e Homossexualidade (CLAM/IMS/UERJ – CESEC/UCAM), realizada durante a 5ª Parada da Diversidade de Pernambuco, de 2006, mostram que 41,2% do(a)s participantes do evento disseram não freqüentar religião alguma, porcentagem bastante consistente com as anteriormente encontradas, pela mesma pesquisa, nas Paradas do Orgulho de São Paulo, em 2005, e no Rio de Janeiro, em 2004, onde respectivamente 40,8% e 43,1% dos entrevistados, declararam não freqüentar algum tipo de religião ou de culto religioso. Experiências de exclusão ou marginalização em ambiente religioso foram relatadas por 21,6% dos(as) entrevistados(as), sendo o grupo das trans (50%) o que destacadamente sofre mais discriminações, de acordo com o estudo. Para o padre Luis Corrêa Lima, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, a Igreja Católica tem, assim como a maioria das religiões, uma dificuldade em acolher a diversidade sexual.
“As mudanças na Igreja são relativamente lentas, apesar das necessidades serem urgentes. No caso de pessoas GLBT, tudo indica que há pouca abertura das comunidades religiosas em acolhê-las e compreendê-las”, afirma ele. Para o teólogo, é possível a qualquer pessoa GLBT vivenciar sua sexualidade e freqüentar a Igreja. “O critério último da ação humana é consciência. Ninguém deve agir contra a própria consciência e nem deve ser impedido de agir de acordo com ela”, ressalta.
Na pesquisa, entre o(a)s que declararam pertencer a alguma religião, predominam o(a)s católico(a)s (29%), embora em número bastante inferior ao estimado para a população brasileira em geral, na qual, segundo o Censo 2000, 74% afirmaram-se católico(a)s. O relatório completo do estudo – que também levanta dados sobre violência, discriminação e sociabilidade GLBT – realizado em parceria com o Instituto Papai, o Fórum LGBT de Pernambuco e o Núcleo de Pesquisas em Gênero e Masculinidades (Gema / UFPE), está sendo lançado pelo CLAM e já se encontra disponível para download.
Nesta entrevista, Luis Corrêa Lima fala das divergências entre as normas da Igreja e a consciência (e a prática) dos fiéis, analisando os discursos do papa Bento 16 em relação ao uso do preservativo e às uniões homoafetivas. O teólogo é padre jesuíta, doutor em história, professor do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio e membro de grupo de pesquisa sobre diversidade sexual, cidadania e religião. É também autor dos artigos “Bento 16 e o mundo gay” e “A controvérsia da camisinha – A Igreja Católica e a Aids” e possui outros artigos publicados no site Diversidade Católica, projeto em favor da inclusão e valorização dos gays dentro da Igreja.
Em Recife, 41,2% do(a)s respondentes à pesquisa Política, Direitos, Violência e Homossexualidade, realizada durante a 5ª Parada da Diversidade de Pernambuco de 2006, disseram não freqüentar religião alguma, percentual parecido com o das Paradas do Orgulho de São Paulo-2005 e do Rio de Janeiro-2004, onde 40,8% e 43,1%, respectivamente, declararam não freqüentar algum tipo de religião ou culto religioso. Como o sr. analisa o fato de a maioria de gays e lésbicas entrevistados no estudo declararem-se sem religião?
Este número de fato é bem superior à média nacional, que está abaixo de 10%. Gays e lésbicas têm um perfil bem diferente em relação à religião. Aliás, os “sem religião” do Censo não são necessariamente pessoas descrentes ou atéias. São pessoas que não se identificam com as religiões institucionalizadas e não têm uma pertença específica. No caso de pessoas GLBT, tudo indica que há pouca abertura das comunidades religiosas em acolhê-las e compreendê-las. Certamente a Igreja Católica compartilha a dificuldade do mundo religioso em acolher a diversidade sexual. As mudanças na Igreja são relativamente lentas, apesar das necessidades serem urgentes. Convém lembrar um teólogo dominicano francês, Claude Geffré, que diz: “O cristianismo só permanecerá vivo se souber reinterpretar seus textos e adaptá-los às novas situações e à nova experiência histórica que vivemos”. Oxalá o faça e viva.
Se comparada às igrejas evangélicas, a Igreja Católica se coloca de forma mais flexível em relação aos homossexuais – estes podem freqüentá-la, desde que sejam abstinentes, mesmo mantendo-se o desejo. Desejar alguém do mesmo sexo não seria considerado um pecado pela Igreja? Como o sr explica tal contradição?
Os homossexuais sempre podem freqüentar a Igreja, vivendo ou não a abstinência. Basta que tenham fé. Mais do que a orientação sexual homo ou hetero, todos os seres humanos são filhos de Deus, criaturas d’Ele. Isto é sempre o mais importante. Gays e lésbicas podem encontrar em diversas comunidades católicas um ambiente de acolhida, compreensão e apoio. Algumas são mais acolhedoras do que outras, evidentemente. E eles podem colaborar ativamente na vida destas comunidades. Quanto ao desejo, ele só é pecaminoso se conduz ao mal e se for deliberadamente fomentado.
Então, o sr. afirma ser possível aos homossexuais conciliar sua sexualidade com a experiência religiosa no catolicismo?
O que faz a Igreja ser Católica é a abertura ao todo. ‘Católica’ significa universal, não no sentido de estar espalhada pelo mundo, mas de estar aberta ao todo onde a verdade se manifesta. A catolicidade é por natureza includente. É o contrário da seita, uma parte da verdade que pretende ser o todo ou a única parte válida. A Igreja não pode deixar de incluir os gays que têm fé.
Se há divergências entre algumas normas da Igreja e a consciência dos fiéis, estes devem procurar conhecer bem as razões apontadas pela instituição e os princípios norteadores. No entanto, o critério último da ação humana é consciência. Como ensina o Concílio Vaticano 2º, ninguém deve agir contra a própria consciência e nem deve ser impedido de agir de acordo com ela.
O sr. enxerga na militância GLBT a tendência à “demonização” da figura papal?
O ativismo GLBT é motivado pelo desejo de ampliar e consolidar direitos, bem como pela reação à discriminação ou à violência. É uma realidade complexa que, muitas vezes, envolve histórias pessoais de feridas e sofrimentos. O discurso da Igreja inegavelmente fere muitas pessoas. Ele pode ser amenizado por uma prática pastoral de acolhida, bem como por uma teologia aberta, capaz de dialogar com a sociedade contemporânea.
Compreende-se que na situação atual a figura do papa seja hostilizada como um inimigo implacável, pois ele representa a unidade da Igreja. Esta hostilidade, no entanto, acaba difundindo uma imagem de Bento 16 ainda mais conservadora, de total intransigência. Assim se faz o jogo dos segmentos ultraconservadores que querem retrocesso. Por exemplo, na visita do papa ao Brasil, um protesto com faixas dizia: ‘Desobedeça o Vaticano, use camisinha sempre’. Deste modo, Vaticano seria sinônimo de proibição total do preservativo. Mas depois da declaração do cardeal Cottier (citada abaixo), poderia muito bem haver uma faixa dizendo: ‘Obedeça o Vaticano, use camisinha sempre que houver risco de contágio’.
Mas, em 2005, Bento 16 disse a bispos africanos que o ensinamento tradicional da Igreja é o único caminho intrinsecamente seguro para se evitar o vírus HIV. Nesse caso, a Igreja prega a abstinência sexual e a fidelidade como solução para esse problema, e não o uso do preservativo, mesmo com a morte de milhões de pessoas devido à doença. O discurso católico não estaria então ultrapassado, em desacordo com comportamentos e necessidades da modernidade?
Certamente. Há um segundo nível do discurso católico que vai além dos ideais e se ocupa de evitar um mal maior. Além do ensinamento tradicional, é preciso contemplar as pessoas e os grupos que estão em situação de risco. Os bispos norte-americanos e franceses já se pronunciaram em favor da camisinha em situações de risco de contágio. No mesmo ano de 2005, o principal assessor teológico do papa – o cardeal Georges Cottier, da Casa Pontifícia – declarou publicamente que em caso de epidemias devastadoras, como na África, é necessário usar o preservativo. Está em questão o mandamento de ‘não matar’.
Com esta mesma convicção, os jesuítas africanos promovem desde 2001 uma campanha de distribuição de camisinha. O lema da campanha é: ‘A aids mata. Protege-te e protege quem tu amas’. Aí se encontra uma devida adequação à situação e às necessidades. Infelizmente, em alguns ambientes católicos, o ensinamento fica apenas no nível da conduta ideal, além de se criticar campanhas alheias pelo suposto incentivo à promiscuidade sexual.
Bento 16 é tido como um dos papas mais conservadores e homofóbicos. Em seu artigo, o sr. chama a atenção de que “o senso comum freqüentemente distorce informações, dando interpretações erradas”. No entanto, no documento “Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais”, o papa afirma que “não existe nenhum fundamento para equiparar ou estabelecer analogias, mesmo remotas, entre as uniões homossexuais e o plano de Deus sobre o matrimônio e a família”. Como interpretar positivamente a forma como ele encara a união civil de pessoas do mesmo sexo?
O que ocorre, na verdade, é que as declarações do papa freqüentemente são recortadas do contexto, analisadas de modo muito superficial, e em seguida associadas a lugares comuns a respeito de Ratzinger. E, com isso, supõe-se que as coisas estejam devidamente explicadas. Não estão. O que se nota no discurso do papa é uma condenação categórica do uso do termo ‘matrimônio’ para as uniões homoafetivas. No entanto, há uma oposição moderada ao reconhecimento civil dessas mesmas uniões. Os termos não são taxativos, e há margem para diálogo. Bento 16 usa uma linguagem moderada ao se opor à legalização das uniões homoafetivas. Ele diz que “parece perigoso e contraproducente”, pois isto enfraqueceria a família tradicional. Ora, a legalização pertence à esfera do Estado, que é independente da Igreja e tem que lidar com a vida de crentes e não crentes. ‘Parece’ não significa necessariamente que seja, e ‘perigoso’ não quer dizer inadmissível. Quanto ao suposto risco para a família tradicional, é bastante questionável pois uniões homo e hetero são de naturezas distintas e não concorrem entre si.