O Brasil tem assistido a um crescimento significativo da população evangélica. De acordo com o Censo de 2010, o segmento evangélico chegou a 22% da população nacional, um crescimento de quase 7% ante os 15,4% registrados no Censo de 2000. O aumento tem repercutido no plano político, especialmente nas instituições públicas, onde cada vez mais se observa a articulação de conteúdos religiosos nas pautas das casas legislativas e no encaminhamento de políticas públicas dos governos.
A chamada bancada evangélica do Congresso Nacional conta com 66 parlamentares (3 senadores e 63 deputados) e tem atuado às claras, de maneira explícita e panfletária, valendo-se de argumentos religiosos para pautar suas ações. Atuação que conta com o auxílio silencioso, mas efetivo, de políticos católicos e até mesmo de espíritas (no caso da cruzada antiaborto). Um cenário que, na conjuntura atual, tem levantado uma questão essencial: em que medida a secularização do Estado, prevista na Constituição de 1988, tem sido violada? Até que ponto a laicidade, enquanto princípio jurídico, é suficiente para dar conta da crescente interlocução entre política e religião nas esferas institucionais? É possível haver sintonia entre demandas emergentes de direitos, como o combate à homofobia (celebrado neste 17 de maio) e o reconhecimento social e legal do trânsito entre os gêneros, e práticas religiosas que buscam se institucionalizar?
O Estatuto do Nascituro, que busca dar ao embrião o mesmo status jurídico de uma pessoa nascida e viva, a Proposta de Emenda (PEC) 99/11, cujo objetivo é conceder a Associações Religiosas a capacidade de propor ação de inconstitucionalidade de leis e atos normativos, e a PEC 33/11, que pretende submeter decisões do Supremo Tribunal Federal à análise do Congresso Nacional, entre outras ações, integram a agenda promovida por políticos religiosos. Esta última proposta (PEC 33/11), de autoria do deputado católico Nazareno Fonteles, nasceu como uma ofensiva para minimizar a atuação e o poder do STF, depois que a Corte máxima do país aprovou as pesquisas com células-tronco embrionárias (2008) e a interrupção da gravidez em casos de anencefalia (2012), e reconheceu a legitimidade das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo (2011), igualando-as às uniões estáveis heterossexuais.
De acordo com a advogada e integrante do CLADEM (Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher), Maíra Fernandes, o fato de o Brasil ser constitucionalmente laico não deveria abrir espaço para que conteúdos religiosos sejam fonte de inspiração para leis e políticas públicas. “É possível vislumbrar, mesmo em um país de forte tradição cristã, espaços políticos neutros à religião. Há inúmeros países com forte tradição católica que conseguem respeitar a laicidade e legislar sobre temas polêmicos em matéria de valores religiosos. Portugal e Itália são países marcadamente católicos e, no entanto, possuem leis que autorizam a interrupção voluntária da gravidez”, observa Maíra Fernandes.
De que maneira, entretanto, é possível preservar a liberdade religiosa, colocada no discurso de setores religiosos como estando sob ameaça? De acordo com Maíra Fernandes, a fé, antes de tudo, é uma questão privada. As doutrinas religiosas de uma sociedade, destaca a advogada, deveriam permanecer no âmbito individual, até por uma questão de respeito à pluralidade de manifestações e crenças.
“Os atos estatais não podem se basear em argumentos religiosos ou dogmáticos. Isso não significa dizer que, em temas polêmicos, as associações e entidades religiosas não devam ter assegurado o seu espaço de manifestação. Em uma democracia, é fundamental que seja assegurada a possibilidade dos representantes dos mais diversos setores da sociedade civil se manifestarem sobre todos os assuntos em pauta no Executivo, Legislativo ou Judiciário, fomentando-se um debate público e amplo”, afirma Maíra Fernandes. “É fundamental que assuntos como os direitos sexuais e reprodutivos sejam debatidos com o devido respeito às posições divergentes para que, ao final, seja qual for o resultado, todos os setores envolvidos no processo de debates possam reconhecer sua legitimidade”, completa.
O argumento da laicidade é um eixo central no discurso dos movimentos sociais que atuam no campo dos direitos sexuais e reprodutivos. De acordo com Thiago Vianna, presidente do Conselho Jurídico da Liga Humanista Secular do Brasil (LSH), a laicidade constitui um princípio com dois sentidos. “A laicidade resguarda, em primeiro lugar, o Estado das interferências religiosas. Em segundo lugar, garante ao Estado democrático as condições para que zele e promova a igualdade de crenças, protegendo inclusive aqueles que se consideram descrentes, sem religião. É justamente a neutralidade do Estado frente os discursos religiosos que permite a convivência pacífica”, observa Thiago Vianna que também preside a Comissão de Diversidade Sexual da OAB/MA.
Nesta semana, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou resolução que obriga cartórios civis a converter uniões estáveis homossexuais em casamento. A proposta foi apresentada pelo presidente do CNJ, Joaquim Barbosa, que também preside o Supremo Tribunal Federal (STF), e aprovada por 14 a 1. De acordo com Barbosa, a resolução visa remover "obstáculos administrativos à efetivação" da decisão do Supremo, tomada em maio de 2011, de equiparar as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo às uniões entre casais heterossexuais. Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal reconheceu ambas como iguais, evidenciando que o Poder Judiciário tem se mostrado como espaço institucional que privilegia, em relação ao Legislativo, uma visão mais inclusiva de direitos sexuais da população LGBT. A resolução aprovada nesta semana pelo CNJ diz que "é vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo". E acrescenta que, se houver recusa dos cartórios, será comunicado o juiz corregedor para "providências cabíveis".
A decisão do STF tem sofrido, desde então, críticas de parlamentares religiosos, que patrocinaram ações judiciais buscando a revogação da decisão. “Há uma tentativa de interferência baseada em preceitos religiosos. Nesse caso, não há outra explicação possível que não seja o uso abusivo da religião. Direitos não podem ser questionados em nome de valores religiosos. Isso é uma coisa básica, que infelizmente tem sido esquecida nos tempos atuais”, argumenta Thiago Vianna.
O projeto de lei 122, que tem como objetivo tornar a homofobia um crime da mesma natureza que o racismo e outras manifestações preconceituosas, tramita há anos no Congresso. Nos últimos anos, o combate ao projeto tem sido uma bandeira empalmada com veemência pela bancada evangélica: para os parlamentos do grupo, a lei representaria uma violação da liberdade de expressão religiosa. A homossexualidade é um fenômeno considerado pecado pelo Cristianismo, cuja doutrina tem no sexo heterossexual e reprodutivo um pilar central. No entanto, até que ponto um valor religioso torna-se aplicável ao mundo das leis? Parlamentares da bancada, como o deputado Pastor Marco Feliciano, cuja eleição para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara desatou uma série de protestos, caracterizam o sentimento entre pessoas homoafetivas como “podre” e como caminho ao “ódio”.
Para combater a acusação de violação da liberdade de expressão religiosa, a última versão do PL 122 retira do rol de possibilidades de manifestações homofóbicas aquelas proferidas dentro dos templos religiosos. “É uma falsa polêmica, de novo alimentada pela mescla indevida entre religião e Estado. Não se pode, sob hipótese alguma, menosprezar a dignidade das pessoas. O discurso de demonização dos gays, por exemplo, induz ao preconceito. O direito à liberdade religiosa é um lado da moeda. O outro é o dever de respeitar. Não se pretende, com o PL 122, restringir práticas religiosas. Pretende-se, conforme já há em mais de 50 países pelo mundo, punir discursos raivosos que se travestem biblicamente. Isso significa, na prática, dizer que ninguém tem o direito de associar a homossexualidade à pedofilia. Isso é uma ofensa”, argumenta Thiago Vianna, para quem o PL 122 não obrigará ninguém a gostar de pessoas LGBT. “A liberdade de consciência permanece autônoma e livre, mas a externalização da mesma deve estar sujeita à lei”, completa.
O caso do Pastor Marco Feliciano tornou-se emblemático, a começar pelo próprio nome regimental. Para Thiago Vianna, seria importante que postulantes a cargos públicos se afastassem de cargos eclesiásticos. “A existência de parlamentares como o Pastor Marco Feliciano é uma afronta à laicidade. E evidencia, a meu ver, como o Brasil está atrasado em termos de separação entre Estado e religião. O País, infelizmente, ainda não tem incorporado a noção de que uma sociedade democrática tem na laicidade princípio imprescindível. E não há uma discussão racional e lúcida sobre o tema”, critica Thiago Vianna, para quem o Brasil caminha para um futuro perigoso, caso as coisas permaneçam como estão.
“O problema não é a religião em si, não é o fato de o deputado ser cristão. É o enraizamento religioso nesses espaços de definição jurídica da ordem social. Como não temer uma teocracia, no longo prazo? Não é algo que se instala rapidamente, mas que se inicia como um processo de tomada de espaços, fato que temos testemunhado”, completa.
Tramita no Congresso, na Comissão presidida pelo Pastor Marco Feliciano, um projeto que busca sustar resolução do Conselho Federal de Psicologia que proíbe a formulação e execução de terapias para “tratar” a homossexualidade por parte de seus profissionais. As diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de outras associações das ciências psi descartaram há décadas a visão patologizante de desejos e práticas homoafetivas. Até que ponto a secularização também não tem sido ameaçada no campo da saúde? No caso do projeto que corre no Congresso, argumenta Thiago Vianna, evidencia-se uma mistura que ultrapassa a relação entre Estado e religião. “Há aí um discurso falacioso e cínico. Falta ciência e discernimento a parlamentares que não conseguem, por conta de valores religiosos, reconhecer a legitimidade dos desejos. Um psicólogo, e isso é o que determina seu órgão de classe, deve ajudar a aliviar o sofrimento. Não a alterar uma condição afetiva ou de desejo que não é considerada, pela ciência, uma doença.”
De 2012 para cá, houve pelo menos dois cultos realizados no Congresso por parlamentares da bancada evangélica, que justificam a prática através do argumento da liberdade religiosa. “Espaços políticos não são lugar para culto. É uma das condições básicas, inclusive, para que se haja respeito e igualdade perante todas as outras religiões. Um aspecto que chama a atenção é o rechaço que integrantes da bancada evangélica dedicam a manifestações de outras religiões. Gostaria de ver se haveria tanta desenvoltura caso praticantes do candomblé ou do espiritismo realizassem seus rituais ali. Obviamente, sabemos que, apesar de setores evangélicos defenderem valores cristãos de respeito e amor ao próximo, na prática a situação é distinta. Há o patrocínio de uma intolerância contra religiões de matriz africana. Um patrocínio sutil e cínico, pois se esconde através de uma declarada liberdade de crença”, argumenta Thiago Vianna.
A atuação de setores religiosos no Congresso não é nova, mas tem se intensificado nos últimos anos, o que se explica, em parte, pelo papel que a bancada evangélica desempenha no xadrez da coalizão governamental. O governo da presidente Dilma Rousseff tem se omitido diante de temas caros à moral cristã. A pressão de políticos religiosos se avoluma, forçando o governo a suspender políticas públicas sobre diversidade (kit anti-homofobia, em 2011) e prevenção ao HIV/Aids (retirada, em 2012, de campanhas voltadas ao público gay).
Tal recrudescimento religioso está inserido em um contexto de ampliação e efetivação lenta de demandas da população LGBT e feminista. O governo do presidente Lula (2003-2010) promoveu Conferências voltadas para minorias e criou o Programa Brasil Sem Homofobia, por exemplo. Avanços que, ainda que incipientes, trazem à tona desigualdades historicamente produzidas em um país marcado pelas injustiças e pelos preconceitos de diversas ordens. Nesse sentido, observa Thiago Vianna, o avanço desse movimento de natureza religiosa espelha um conservadorismo profundo, típico de uma sociedade que segrega minorias. Para o presidente da Comissão de Diversidade Sexual da OAB-MA, no entanto, a discussão mais lúcida sobre o tema da laicidade deve ser feita como condição essencial para enfrentar a conjuntura atual.
“Acredito que o recrudescimento religioso que tenta se institucionalizar é facilitado pela precariedade da educação, que no Brasil está desfocada de uma discussão ampla e consistente de cidadania e direitos humanos. Não vejo outra solução que não seja enfrentar esse desafio e mostrar que religião é algo plural, não significa a mesma coisa. Há vários tipos de fé, de crenças. Respeitar os direitos humanos passa pela aplicação plena da laicidade. É preciso deixar claro que o que estamos assistindo é uma utilização oportunista da religião”, conclui Thiago Vianna.